Porta dos Fundos: humoristas estão entre primeiros alvos de regimes autoritários
Publicado em: Modificado em:
O caso do ataque à produtora do Porta dos Fundos e, agora, da determinação de um desembargador para retirar do catálogo da Netflix o programa especial de Natal dos humoristas repercutiu na imprensa internacional. A França está particularmente atenta: os últimos acontecimentos ocorrem na mesma semana em que o país relembra os cinco anos do atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo, que resultou na morte de 11 integrantes da redação.
Contatado pela RFI, o cartunista KAK, presidente da associação Cartooning for Peace, estava a par da tentativa de censura do programa humorístico brasileiro, no qual Jesus é retratado como homossexual. “Os sinais que o presidente Bolsonaro enviou ao mundo, com o corte de subvenções para a cultura e até do próprio Ministério da Cultura, preocupam as pessoas que conhecemos lá. Ninguém mais tem certeza sobre que liberdade se terá para manter o tom satírico que caracteriza as charges”, afirma KAK, ao comentar se houve avanços ou recuos da liberdade de expressão no mundo desde que a redação do Charlie Hebdo foi dizimada, em plena Paris.
O cartunista, à frente da associação que reúne 200 desenhistas de 70 países para proteger a liberdade de expressão, constata que, de 2015 para cá, a ascensão de governos populistas nas democracias ocidentais fez com que, em países autoritários, a situação se tornasse ainda mais perigosa para quem faz piada sobre temas como política e religião. “O humor é um antidoto contra o pensamento único: é algo que nos permite olhar um assunto sob diversos prismas diferentes, ao ponto de se tornar até engraçado. Nenhum assunto é monolítico: nem mesmo as coisas mais dramáticas”, defende KAK.
Humoristas na mira de ditadores
“O humor é também um antídoto contra o medo. É por isso que, nos regimes autoritários, sistematicamente os humoristas e chargistas estão entre os primeiros a serem perseguidos pelos ditadores”, continua. “Eles têm plena consciência de que, ao semear o ridículo, os humoristas enfraquecem a autoridade deles. Quando você quer impor a sua autoridade pelo medo, e não pelo respeito, o seu pior inimigo é o humor.”
Para KAK, nos países nos quais governos ultraconservadores cristãos chegaram ao poder, o maior risco é que a religião passe a assumir um papel que sequer é previsto na lei. Ele lembra que, embora os ataques ao Charlie Hebdo tenham sido cometidos por fundamentalistas islâmicos, na história do jornal, o número de processos movidos por entidades católicas é “muito superior” aos iniciados por organizações muçulmanas, após a publicação de charges consideradas ofensivas.
Ditadura das redes sociais
Nas democracias ditas maduras, como a França, são as ameaças e assédios via redes sociais que se somaram ao medo de ataques extremistas. “Hoje temos que enfrentar essa tirania das redes sociais, em que as pessoas se acham intimamente atacadas a cada vez que uma opinião contrária à sua é emitida”, afirmou o redator-chefe do Charlie Hebdo, Gérard Biard, em entrevista à RFI.
A edição de aniversário dos atentados estampou na capa um cartunista esmagado por um smartphone, sob o título “Novas censuras, novas ditaduras”. “Não somos os únicos a sermos confrontados a esse tipo de censura e pressão das mídias sociais. Mas nos sentimos mais expostos por publicarmos charges satíricas que, em geral, não são feitas para agradar ninguém”, disse o chargista.
A Cartooning for Peace chegou a editar um manual de proteção para os cartunistas que se sentem ameaçados sob as mais diversas formas. O guia, redigido com a colaborações de organizações internacionais como a ONU, tem dicas sobre o que diz a lei internacional, como perceber e enfrentar os riscos e também como reagir aos ataques virtuais.
Censura prévia para evitar incômodos
“As pessoas têm todo o direito de ficarem bravas, de protestarem. Mas devem fazê-lo pelos meios legais e aceitando o fato de que, sim, às vezes o humor pode nos machucar”, frisa KAK, cujas charges atualmente são publicadas no site L’Opinion.
Ele destaca que, diante da avalanche de críticas que pode sofrer uma publicação, até veículos tradicionais da imprensa, como o jornal The New York Times, podem ceder à intimidação. A publicação de uma charge considerada antissemita em abril acabou resultando na demissão dos dois cartunistas que trabalhavam para o jornal.
“Foi uma censura preventiva: eles não querem nem mais correr o risco de ter problemas”, protesta KAK.
STF derruba a medida
No Brasil, a Netflix reagiu na tarde desta quinta-feira à determinação do desembargador Benedicto Abicair, do Rio de Janeiro, para retirar o programa do ar. "Apoio fortemente a expressão artística e vou lutar para defender esse importante princípio, que é o coração de grandes histórias", disse a sede brasileira da gigante americana.
Em seguida, o Supremo Tribunal Federal acatou o recurso colocado pelo canal e derrubou a medida. "Não se descuida da relevância do respeito à fé cristã (assim como de todas as demais crenças religiosas ou a ausência dela). Não é de se supor, contudo, que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de 2.000 anos, estando insculpida na crença da maioria dos cidadãos brasileiros", justificou o presidente da corte, Dias Toffoli.
Sobre o especial do Porta dos Fundos: apoio fortemente a expressão artística e vou lutar para defender esse importante princípio, que é o coração de grandes histórias.
Netflix Brasil (@NetflixBrasil) 9 janvier 2020
NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.
Me registro