“The Talk” ou "a conversa": como as famílias negras educam as crianças para sobreviver ao racismo
Desde muito cedo, em famílias negras, mães e pais se veem obrigados a instruir os filhos e filhas sobre como se proteger em uma sociedade supremacista branca. Nos últimos anos, essa tradição – que atravessa gerações - adquire tom político e incita o empoderamento.
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“Minha filha tinha cinco anos de idade. Ela estava se arrumando e eu disse: ‘nossa, filha, como você está bonita!’. E ela respondeu: ‘não, papai, eu não sou bonita porque eu sou preta’.”
Essa foi a primeira vez que o analisa de sistemas Fabiano Izabel, de 45 anos, conversou com a filha sobre racismo. Nina repetiu em casa o que ouvia de uma colega na escola: que apenas as meninas brancas eram bonitas.
A situação, apesar de revoltante, não foi uma novidade para Fabiano, assim como não é para nenhum cidadão negro ou negra no Brasil. O racismo arraigado à cultura tradicionalmente escravocrata da sociedade brasileira obriga as famílias a realizarem com suas crianças o que os afroamericanos chamam de “the talk” - a conversa.
“É uma questão de sobrevivência”, afirma a psicóloga Livia Marques sobre o hábito desta conversa que atravessa gerações e vai se adaptando de acordo com a fase da vida. Começa quando a criança é exposta aos primeiros comportamentos discriminatórios na escola ou no grupo de amigos e evolui à medida em que a sociedade impõe seus parâmetros supremacistas e dita o que é correto ou permitido baseado na cor da pele.
“É uma conversa sobre como a gente precisa se comportar para sobreviver, é algo obrigatório na nossa educação”, diz a coautora de “A Psicologia e a Essência da Negritude – Uma Visão de Ser Negro no Brasil”.
“Eu tenho filhos negros e eu explico para eles que quando formos abordados por um policial, imediatamente devemos parar. Respondemos com educação sempre: ‘bom dia, boa tarde ou boa noite’, sem olhar nos olhos. Sempre precisamos ter conosco nosso documento de identidade e, se tivermos uma formação superior, levamos sempre o registro dela. Se formos abordados pela polícia e estivermos dentro do carro, colocamos automaticamente as mãos para cima. Se houver crianças no carro, as instruímos para ficarem quietas e responder a tudo aquilo que policial perguntar”, relata Livia.
Bárbara Carine Soares Pinheiro, professora da Universidade Federal da Bahia e idealizadora da Escolinha Maria Felipa, em Salvador, afirma que esse racismo estrutural da sociedade brasileira faz com que as crianças cresçam com a percepção de descaso e desamparo do próprio governo. “Desde muito cedo, minha mãe falava que a gente não deveria correr, que quando fôssemos entrar e sair de lojas ou supermercados deveríamos sempre deixar as mãos à mostra… Ou seja, tem todo um campo discursivo de orientações que as famílias negras dão às crianças. Isso faz, inclusive, que a gente cresça vendo o Estado como um não-aliado”, analisa.
Um episódio que viveu na adolescência é a prova da desconfiança que desenvolveu diante das instituições vistas como um adversário e não como um suporte. “Quando adolescente, eu tinha muitas cólicas durante o período menstrual e, às vezes, chegava a desmaiar de dor. Certa vez, eu senti que iria desmaiar na rua, em Salvador, mas na minha frente havia uma viatura da polícia. Eu deveria ter uns 13 anos. Me segurei o máximo que pude porque eu sabia que não poderia desmaiar na frente da polícia. Isso foi muito marcante na minha vida”, relembra.
Falar abertamente sobre racismo é algo novo
Essa instrução em prol da sobrevivência é transmitida de uma geração para outra, mas nem sempre aconteceu de forma explícita, conta a historiadora Luciana da Cruz Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). “É muito novo, no Brasil, a iniciativa de conversar abertamente com os filhos sobre racismo”, diz.
Luciana conta que, quando adolescente, seu pai sempre a aconselhava a sair com a carteira de identidade, mas nunca a explicou o porquê. Foi somente adulta, na universidade, que Luciana percebeu que colegas brancas e brancos não tinha a mesma “obsessão pelo RG que nós, negras e negros, temos”, afirma.
“Na juventude do meu pai, durante a Ditadura Militar, se ele, que era um homem negro, fosse pego na rua sem a carteira de trabalho, poderia ser preso. Por isso, ele me dava esse conselho, fazendo inconscientemente uma referência histórica à Lei da Vadiagem, que punia com prisão quem ficasse na rua sem razão. Era uma forma de controlar o cotidiano dos negros, sobretudo dos jovens”, explica a historiadora.
O decreto de lei 3.688/41 foi sancionado em 1941 no período do Estado Novo de Getúlio Vargas, mas essa legislação discriminatória, que permaneceu vigente até 2012, teve origem muito antes. O Código Penal de 1890 – dois anos depois da Abolição da Escravatura no Brasil – já mencionava punições aos “vadios e capoeiras”.
“Acreditava-se que se não houvesse um controle dessa juventude negra, seriam todos vagabundos que não iriam trabalhar. Ao longo da História, o Brasil foi criminalizando o corpo e a juventude negra sem utilizar a palavra raça. Então, nas famílias negras, foi criada essa estratégia: se você se comportar bem, se você andar sempre com a carteira de trabalho, você não vai ser alvo da violência policial”, reitera.
Apesar dos séculos de opressão, a professora salienta que a comunidade afrodescendente não foi, até muito recentemente, treinada para lidar com o racismo. Segundo ela, com a popularização das novas tecnologias, a partir dos registros de gravações com celulares denunciando violências policiais contra a comunidade negra, mães e pais começaram a ter a iniciativa de conversar abertamente sobre a questão. A fortalecimento da mobilização da sociedade afroamericana contra o racismo, nos últimos anos, também ajudou a nutrir esse debate.
Uma regra nas famílias negras atuais
Para Fabiano, não há dúvidas de que a divulgação dessas agressões raciais nas redes sociais e nas mídias mudaram o tom desse diálogo nos últimos anos. “Do meu grupo de amigos negros, todos conversaram com seus filhos sobre essa questão. Cada caso que surge, sentamos com nossas crianças para dialogar”, salienta.
O analista de sistemas acredita que essa estratégia instrui os jovens a se protegerem, mas também a reagirem. A filha, Nina, de 15 anos, foi educada para não se calar diante de episódios de preconceito racial como os que o próprio pai viveu quando pequeno em um condomínio de classe média em Todos os Santos, subúrbio do Rio de Janeiro.
“Uma criança de uns 8, 9 anos se recusava a entrar no elevador comigo e com meus irmãos, aos berros, alegando que não entraria naquele elevador com ‘esses neguinhos de morro’. Este evento perverso ocorrera inúmeras vezes, nunca sem o escárnio de adultos e demais crianças e adolescentes que presenciavam a cena”, relembra, em um post que publicou nas redes sociais.
Fabiano também lembra que, quando a família se mudou para o local, onde moradores negros eram raros, no início dos anos 1980, o conselho da avó paterna foi que ele e os irmãos deixassem de frequentar a piscina do condomínio. “Ela fazia o seguinte comentário: ‘veja lá se vocês vão ficar tomando muito sol e ficar mais pretos do que vocês já são”. Inocentemente, ela acreditava que os netos estariam socialmente protegidos se a cor de pele deles parecesse ser mais clara.
Mas nem o conselho da avó, nem o silêncio de Fabiano impediram que ele e seus irmãos fossem alvo de agressões que eram vistas como “brincadeiras” pelos moradores. “Me ofereciam banana, meu apelido era macaco. As meninas do prédio eram muito cruéis, diziam que jamais iriam namorar um garoto preto. Foi muito difícil, muito pesado”, relembra.
Esse conjunto de episódios, segundo o analista de sistemas, tiveram consequências diretas em sua vida, como a falta de autoestima nos primeiros relacionamentos amorosos na adolescência. Anos depois, teve de lidar com a insegurança ao entrar no mercado de trabalho, quando imaginava que jamais seria selecionado em uma entrevista de emprego em sua área, na qual a maioria dos colegas são brancos.
“Por isso, a mensagem que eu passo para a minha filha hoje é completamente diferente. Eu digo para que ela nunca se diminua e que ela saiba que é capaz. Mas sempre com a preocupação de que a saúde mental dela possa ser abalada por qualquer evento racista que ela venha a sofrer”, declara.
Um processo dolorido para mães, pais e crianças
A psicóloga Livia Marques afirma que esse processo da educação familiar contra o racismo é muito dolorido “porque você precisa ensinar seus filhos a lidar com o racismo quando eles ainda são muito pequenos”. “Uma passagem muito marcante na minha vida foi quando meu filho mais velho nasceu. Uma pessoa foi nos visitar no hospital e tirou a touquinha da cabeça do meu filho para ver se o cabelo dele era ‘bom’. Ele era um bebê de um dia e já começava a ser vítima de racismo”, conta.
Livia afirma que, diante desse racismo estrutural - “banalizado e chancelado”, sublinha - as famílias negras são obrigadas a encontrar estratégias para proteger as crianças. “Se levamos nossos filhos no parquinho ou para passear pelo bairro, eles vão sempre muito bem arrumadinhos porque uma criança negra mal vestida pode ser vista como um menino de rua. Temos que lutar diariamente contra os estereótipos dos quais a pele e o corpo negro são vítimas nessa sociedade”, diz.
A psicóloga é frequentemente procurada para saber como explicar o racismo para as crianças. Segundo ela, o primeiro passo são mães e pais aprenderem a gostarem de si mesmos. “É essencial que nossa autoestima seja trabalhada. Porque, infelizmente, no Brasil, nossa história é apagada por conta da necropolítica que existe no país. Eu costumo dizer que nós, negros, vamos sendo mortos mesmo em vida. Não apenas por conta da violência policial, mas por privarem de educação, de saúde, de nossos direitos. E isso vai nos matando dia após dia”, avalia Livia.
Outra dica da psicóloga é que os pais utilizem representantes negras e negros como exemplos de conquista e sucesso na vida das crianças. “Aqui no Brasil, na televisão, temos Taís Araújo e Lázaro Ramos. Na literatura, temos Conceição Evaristo. No teatro, temos o Pequeno Príncipe Preto. No cinema, o T’Challa [super-herói do filme ‘Pantera Negra’]. Ou seja, precisamos nos munir dessa representatividade para que lidar com o racismo seja menos dolorido e traumático. Mas é a partir da nossa história, da nossa narrativa e da nossa união que vamos conseguir superar isso”, reitera.
Escola promove educação antirracista e afrocêntrica
Preocupada com a educação que a filha iria receber em um sistema de educação voltado para a História e a cultura europeia branca, Bárbara Carine, professora da Universidade Federal da Bahia, teve a ideia de fundar a Escolinha Maria Felipa, cuja filosofia educativa é afrocêntrica. “As crianças negras sofrem de uma constituição identitária de um não-lugar, pensada a partir de espaços de poder. Isso é algo muito óbvio no Brasil. Esse racismo estrutural escancara isso diante da gente o tempo todo”, diz.
Ela lembra que, apesar de negras e negros serem 54% da população do Brasil, a educação e a cultura das crianças é baseada em perspectivas e representatividade branca. “Eu tinha 30 anos quando fui, primeira vez, em uma médica negra na minha vida, Dra. Nadinalva. E é assim o tempo todo com presidentes, parlamentares, juristas. As crianças ligam a TV e veem pessoas brancas o tempo todo. Nos livros de literatura infantil, elas são representadas por princesas e príncipes brancos. Os escritores e escritoras são sempre pessoas brancas”, observa.
Ao entrar na escola, o processo não muda, afirma Bárbara. “As estruturas hierárquicas escolares são racializadas: os diretores são brancos, os coordenadores pedagógicos são brancos, as professoras são brancas. Mas o porteiro da escola é uma pessoa negra, quem limpa a escola são negros, as babás são negras. Então, desde muito cedo, as crianças começam a hierarquizar o mundo a partir de quem manda e de quem obedece e criam essas constituições identitárias raciais a partir da subordinação de corpos negros”, salienta.
Por isso, na Escolinha Maria Felipa, que acolhe crianças de 2 a 5 anos, a educação é centrada no pioneirismo africano no campo científico, filosófico e literário. O objetivo, segundo Bárbara, é promover uma educação antirracista “de uma África ancestral que nos foi amputada”.
“Na Escolinha, as crianças vão estudar que, através da descoberta de fósseis, pode ser que a humanidade tenha surgido no continente africano. Vamos trabalhar a aritmética e a geometria a partir das bases ancestrais africanas, aprender que a escrita surge na África, que o papiro foi a primeira forma de papel criada na África, que a primeira mulher médica da História da Humanidade foi Merit Ptah, de 2700 a.C e que o pai da Medicina não é Hipócrates. Ou seja, falamos do pioneirismo africano para mostrar que há potência na nossa existência”, destaca.
Para Bárbara, além de conversar sobre racismo, também é essencial que as crianças se vejam representadas e empoderadas por suas raízes. “Elas vão entender que, quando elas chegarem na universidade e que, como eu, se depararem com nenhum professor negro ou professora negra, ou quando ligarem a televisão e só virem pessoas brancas, elas vão saber que existe um problema e vão poder contestar. Porque, através desta dimensão antirracista que tiveram como base, elas vão entender de fato o que é a humanidade”, conclui.
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