Mostra FARaway na França joga holofote sobre artistas brasileiros, entre estética, ética e política
Publicado em: Modificado em:
Acontece na cidade de Reims, na região de Champagne, a 150 km de Paris, a primeira edição da mostra FARaway, que será aberta nesta quinta-feira (30) pelas Amazones d’Afrique, estrelas da world music e ativistas conhecidas da África Ocidental. O festival traz um verdadeiro “tumulto artístico”, segundo a organização, para “fazer emergir uma cena contemporânea engajada e estimulante, tanto politicamente quanto esteticamente”. O FARaway, que fica em cartaz até o dia 10 de fevereiro, traz uma programação que destaca grandes artistas brasileiros, “agitadores e agitadoras”, como Christiane Jatahy (Julia e O Agora que demora), Lia Rodrigues (Fúria) e Luiz de Abreu (Samba do Crioulo Doido).
O festival FARaway abre suas portas consagrando uma convergência de forças artísticas de vários continentes, sob forte tonalidade política. No show de abertura desta quinta-feira (30), Kandia Kouyaté, Mamani Keita, Rokia Koné, Mariam Doumbia, Nneka, Mariam Koné, Mouneissa Tandina e Pamela Badjogo mostram porque são conhecidas como o “primeiro supergrupo feminino da África Ocidental”. Com elegância, as Amazones d’Afrique abrem os trabalhos na medieval cidade de Reims, com os tambores e acordes do Amazones Power, um disco que mistura referências regionais à world music para “lutar contra as desigualdades de gênero, a misoginia e o machismo”.
A participação brasileira ganhou um capítulo à parte na programação. Durante a primeira semana do festival, a obra videográfica Blindly, da artista brasileira radicada em Bruxelas, Kika Nicolela, traz uma reação ao dia 17 de abril de 2016, quando os deputados brasileiros votaram o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, pronunciando discursos e elegias particulares na hora do voto. Segundo a artista, “foi a primeira vez que a profundidade da estupidez, da misoginia e da religiosidade dos membros do Congresso brasileiro se tornaram tão evidentes”. Nicolela apresentará também o seu Exquisite Corpse Video Project (ECVP), um projeto de vídeo colaborativo com artistas do mundo inteiro.
A celebrada diretora Cristiane Jatahy volta a reencenar duas peças de seu repertório, Julia, inspirado na peça Senhorita Julia, de Strindberg, e O Agora que demora, destaque do Festival de Avignon de 2019 e o segundo volume da sua trilogia inspirada pela Odisseia. Em entrevista à RFI na estreia em Avignon, Jatahy disse que “estamos vivendo a criminalização dos artistas, dos intelectuais, a criminalização do pensamento e um desejo de calar. Isso é um pensamento ditatorial: calar a diferença”. Seu último espetáculo fala sobre migrantes e exilados, seja de territórios, afetos ou direitos.
Ainda no tapete vermelho estendido ao Brasil no festival FARaway, toda a Fúria de Lia Rodrigues, coreógrafa que traz a voz de um Brasil marcado pela colonização, pela escravidão e por décadas de ditadura. Na dança-performance, criada em estreita colaboração com os nove dançarinos presentes no palco, alguns deles vindos de sua escola na favela da Maré, Lia Rodrigues questiona a alteridade. Fúria questiona as identidades e o relacionamento do indivíduo com o grupo e a comunidade.
O festejado coreógrafo e performer brasileiro Luiz de Abreu remonta para a cena do FARaway uma peça criada em 2004, o Samba do Crioulo Doido, sobre a objetificação do corpo negro pela sociedade. Abreu, que ficou cego no ano passado após complicações no tratamento de uma doença autoimune nos olhos, realiza um trabalho de “transmissão” com o também performer negro Calixto Neto, radicado em Paris. “Em 2004 era o começo da democracia, era um desejo de democracia. Estávamos começando a ter voz, a criar um discurso, um lugar de fala, com os governos de esquerda. Agora vivemos o final do ciclo da democracia e o começo de uma ditadura, de um fascismo absurdo”, lembra o coreógrafo, em entrevista à RFI.
Samba de um Crioulo Doido, criado em 2004 como espetáculo selecionado pelo Rumos Itaú Cultural, no Brasil, é um solo de Luiz de Abreu, apresentado em vários festivais pelo mundo. “Reflito sobre o corpo negro. Os elementos são esse corpo negro e o samba. O cenário é a bandeira do Brasil, onde essa história se desenvolve. O figurino é minha pele negra, estou nu em cena. Falo sobre ‘pretitude’. Visto apenas uma bota de 15 centímetros, uma alusão a uma representação de mulata, ou a um fetiche, à objetificação do olhar do outro sobre este corpo negro”, descreve o artista. “Trabalho sobre os clichês e esse olhar estereotipado que o outro tem sobre o negro”, resume.
“Acho engraçado quando falam em censura agora. Em 2004 tive que entrar com mandado contra o governador do Piauí, que não me deixou apresentar o trabalho lá. A situação do Brasil se atualiza”, analisa Abreu. “Continuo recebendo muitos convites para apresentar o Samba do Crioulo Doido. De alguma forma, ele reflete profundamente o que é o Brasil hoje, o que é essa bandeira, símbolo do nosso país, esse corpo negro, que está sendo objetificado de novo por meio de uma estratégia de governo, e não mais apenas pelo inconsciente tradicional do brasileiro”, diz. “Agora é uma política de governo a objetificação do corpo negro, assim como o corpo da mulher e o corpo do gay, do e da trans”, afirma.
“Um dos desafios agora para o festival FARaway é a transmissão desta dança de um corpo negro para outro corpo negro”, diz Luiz de Abreu em relação ao trabalho com Calixto Neto. “Como transmitir uma dança que é tão pessoal, feita num corpo específico, para outro corpo? O desafio é como criar procedimento metodológico para fazer essa transição”, conta. Fecha a participação brasileira em Reims o debate do público com os artistas Thomas Quillardet, Calixto Neto e Kika Nicolela, intitulado Artistas e regimes autoritários, sobre “o que se passa no Brasil após a eleição de Jair Bolsonaro”. Segundo a organização da mostra, “a esfera neofascista nos ameaça também na Europa. O que acontece no Brasil diz respeito ao mundo”. A noite brasileira termina com a discotecagem do DJ Thy San.
FARaway traz ainda a potência do continente africano com obras viscerais. Congo, com texto de Eric Vuillard e direção de Faustin Linyekula, que encenou esta montagem a convite de Tiago Rodrigues, no renomado teatro D. Maria II, em Lisboa, traz um país “inventado” sob o fantasma do então rei belga, o perverso Leopoldo II. O Silêncio e o Medo, de David Geselson, interroga a ancestralidade negra e colonial da vida de Nina Simone, uma “epopeia de quase 70 anos que termina numa solidão quase total, na França, em 2003”. E Hate Radio, do celebrado diretor suíço Milo Rau, traz uma poderosa reconstituição dos programas transmitidos pela Radio Mille Collines, que tiveram um papel central na disseminação do genocídio de Ruanda, em 1994.
Ainda na programação, a libanesa Youmna Saba faz uma homenagem à poeta da era pré-islâmica Jalila, espetáculo em árabe com legendas em francês e inglês. Na sequência, a jovem síria que vivia em Aleppo quando a guerra começou, Waad al-Kateab, mostra que a vida continua sob o bombardeio. Seu documentário, Pour Sama, mostra diariamente as perdas, as esperanças e a solidariedade do povo de Aleppo. Waad e seu marido médico se encontravam então divididos entre fugir e proteger sua filha Sama, ou ficar e resistir pela liberdade de seu país. O filme, que descreve a guerra, é também uma mensagem desconcertante da diretora, Waad al-Kateab, para sua filha, Sama.
O festival FARaway fica em cartaz em Reims até 10 de fevereiro de 2020.
NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.
Me registro