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"É tentativa de romper com o silêncio da memória colonial", diz historiadora sobre atos contra estátuas

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A onda de manifestações contra o racismo, desencadeada pela morte do afroamericano George Floyd, resultou também na derrubada de estátuas e ataques a monumentos que simbolizam um passado colonial escravagista e de opressão racial em vários países. Esses atos, segundo a historiadora gaúcha Caroline Siqueira Bauer, buscam romper com o silêncio de um passado colonial e trazer novos significados para a memória social.   

A historiadora Caroline Silveira Bauer, professora da UFRGS
A historiadora Caroline Silveira Bauer, professora da UFRGS © Divulgação
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A estátua do ex-traficante de escravos Edward Colston, destruída e jogada em um rio de Bristol no Reino Unido, assim como as pichações de monumentos em homenagem a Leopoldo II na Bélgica, ex-colonizador do Congo, se inserem em um contexto de repensar o passado para várias sociedades, avalia Caroline, professora do departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

“Esse processo, que ganhou visibilidade com a terrível morte de George Floyd, expondo mundialmente o racismo na sociedade americana, perpassa todas as sociedades que passaram por processos coloniais de escravização de africanos”, acrescenta a especialista, que integra o Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA) e pesquisa temas como a representação de passados traumáticos e elaboração de políticas de memória.  

Segundo Caroline, o fenômeno trouxe questionamentos sobre a relação da memória com os lugares públicos materializada por meio de  estátuas, prédios e outras construções.  

“Ainda que a memória possa ser transmitida por meio de gerações ou que haja relatos históricos, presente nos livros didáticos, ou que circule pela sociedade, temos espaços onde a memória é materializada. Estátuas são espaços de materialização de memória”, teoriza.

A historiadora prefere falar em ressignificação desses espaços de materialização de memória ao invés de atos de derrubada ou mesmo vandalismo. “É uma tentativa de romper com o silêncio a respeito dessa memória vinculada com o passado colonial”, argumenta.

A professora, que viveu durante um ano em Barcelona para fazer pesquisas, exemplifica o caso da Espanha, onde observou o debate sobre o legado da colonização espanhola na África e América Latina. “A discussão na Espanha é que dentro de um regime democrático não é possível homenagear pessoas que estiveram vinculadas com atos que são considerados genocídio, crimes contra a humanidade”, afirma. 

A ressignificação de elementos simbólicos passa necessariamente pela destruição de monumentos e homenagens que fazem referência a um passado opressivo?

A historiadora diz que o questionamento é aberto na comunidade científica. “Há quem defenda a retirada desses estatuários e dos símbolos para colocar dentro de museus com determinados relatos. Há os que se vinculam a um movimento estético artístico, filosófico, que é chamado de antimonumentos, ou seja, que um monumento não deve ser trocado por outro no sentido contrário. E há os que acreditam que as ruínas têm um significado e passam um discurso também. Não existe certo ou errado”, destaca.

“O que acho importante é  pontuar o debate público sobre a questão. O ato de derrubada é muito mais profundo. Há outras camadas de interpretação. Nossa função é tentar sair dessa superfície do ‘ato de vandalismo’ e tentar entender o que está sendo dito a partir desses atos em relação às estátuas”, ressalta. 

Preocupação com o caso brasileiro

A historiadora lembra ainda que o patrimônio, a memória e a história são sempre “esferas de disputa". “Nunca teremos uma memória conciliatória, que agrade a todos os envolvidos. Isso é normal e aconteceu em outros momentos históricos”, ressalta.

Para Caroline Siqueira Bauer, debater publicamente as memórias é fundamental dentro de um regime democrático, desde que todos os atores tenham espaço para manifestar suas experiências e histórias. 

No Brasil, ela observa que muitos coletivos têm se dedicado nos últimos anos a ressignificar a história colonial e também de outros períodos onde houve arbitrariedade, como durante o Estado Novo e a ditadura civil-militar brasileira. 

“O que me preocupa agora é que a ideia desse processo de ressignificação esteja inserido dentro de uma politica de memória, ou seja, que não se trate de atos isolados e que façam parte de um processo amplo, incluindo a cidadania e os governos, de discussão a respeito de quais são os parâmetros éticos e morais que pautam o Estado. Para que não tenham contradições no sentido de retirar as estátuas do espaço público e de ressignificá-las, mas manter outras políticas racistas em funcionamento. Por isso, a importância de envolver a sociedade civil e o Estado na resolução dessas questões do passado e na elaboração de políticas públicas”, diz.

A historiadora lembra que no relatório final da Comissão da Verdade, que se debruçou sobre o período da ditadura militar (1964-1985), houve a recomendação de rever homenagens feitas a personalidades em estatuários, monumentos e até em nomes de escolas, avenidas e cidades em homenagem a ditadores. “Por problema políticos, essa recomendação não foi adiante e acabaram apenas em iniciativas pontuais, resultando nas revisões de alguns aspectos. Isso dilui a potencialidade de abrir espaço da discussão dessas memórias”, lamenta.

 

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