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Aposentadoria precoce da n° 1 do tênis reacende discussão sobre saúde mental de atletas

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Aos 25 anos e já aposentada. A australiana Ashleigh Barty, número 1 do ranking da WTA, surpreendeu o mundo ao anunciar que não disputaria mais partidas do tênis profissional. Depois de vencer 15 títulos de simples, sendo três de Grand Slam - o Aberto da França em 2019, Wimbledon em 2021 e o Aberto da Austrália, este ano - ela confessou estar exausta. O anúncio chama atenção para dificuldades físicas e psicológicas de outros atletas profissionais.

A tenista australiana Ashley Barty nas semifinais do Aberto da Austrália, em 30 de janeiro de 2020, em Melbourne.
A tenista australiana Ashley Barty nas semifinais do Aberto da Austrália, em 30 de janeiro de 2020, em Melbourne. AFP
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“Eu não tenho mais a disposição física, emocional e tudo o que é necessário para você se desafiar no mais alto nível”, revelou Barty na despedida.

Burnout? Depressão? Logo surgiram muitas interpretações para a decisão. O psicólogo francês especializado em esporte Makis Chamalidis aponta a conjuntura atual. “Podemos dizer que, hoje em dia, manter-se no topo com tudo o que vivemos, como a epidemia de Covid-19, o confinamento e todo o desgaste, consome muita energia e visivelmente isso não é mais uma prioridade para a atleta”, observa.

Numa mensagem de vídeo em que aparece chorosa ao lado da amiga e ex-parceira de duplas Casey Dellacqua, Barty agradeceu por tudo o que viveu nas quadras. “Estou tão feliz, realizada e, no meu coração, sei que isso é o certo. Estou muito agradecida por tudo o que o tênis me deu, todos os meus sonhos e mais. Mas sei que agora é a hora certa para eu me afastar e perseguir outros sonhos e largar as raquetes", concluiu.

Com o título histórico em Roland Garros, Barty se tornou a primeira australiana número 1 do mundo desde Evonne Goolagong-Cawley, que chegou ao topo em 1971. O mundo do tênis recebeu a notícia de sua aposentadoria precoce com surpresa. "Obrigada por ser uma embaixadora incrível para este esporte e para as mulheres em todo o mundo", tuitou a WTA. "Nós vamos sentir tanto a sua falta, Ash".

"Parabéns pela carreira incrível, Ash. Foi um privilégio dividir a quadra com você", escreveu a tcheca Karolina Pliskova, derrotada por Barty na final de Wimbledon, no ano passado.

"Minha amiga, sentirei a sua falta no circuito. Você era especial e compartilhamos momentos incríveis", publicou, no Twitter, a romena Simona Halep, ex-número 1 do mundo. "Seja feliz e aproveite sua vida ao máximo".

"Feliz por Barty, triste pelo tênis", comentou, em sua rede social, o britânico Andy Murray.

O fenômeno, no entanto, não é novo. Em 2008, a tenista belga Justine Henin anunciou, em uma conferência de imprensa, que se retirava do circuito profissional de maneira definitiva e irrevogável. Era a primeira vez que uma tenista encerrava sua carreira enquanto número 1 mundial. Ao se retirar das quadras, a atleta acumulava 5.695 pontos na classificação da WTA. A segunda colocada, Maria Sharapova, tinha, então, 3.986.

“É o atleta que decide o seu ritmo de vida. Às vezes, é melhor parar no auge do que jogar dois ou três anos a mais. O importante é que seja uma decisão bem pensada e amadurecida”, completa Makis Chamalidis.

Desgaste físico faz parte da rotina de atletas profissionais

Com experiência de quem já foi jogadora de futebol e médica da seleção brasileira feminina militar, duas vezes campeã mundial, a ortopedista carioca Daniela Hauila diz não ter se surpreendido com a decisão da tenista Ashleigh Barty.

“O cansaço é físico e mental. Ela começou a jogar aos 7, 8 anos de idade, então, tem uma carreira de quase 20 anos. E esporte é abnegação, rotina e sobrecarga física. Não existe esportista de alto rendimento que não tenha dor”, explica a médica do esporte.

“Como ela chegou ao topo no tênis, ela se achou no direito, provavelmente, de dizer que já tinha dado tudo para o esporte e queria se dedicar para si mesma”, avalia. “Acordar todos os dias as 5 horas da manhã, ter uma rotina que as pessoas julgam saudável, mas que não traz saúde para o corpo porque você está sobrecarregando o corpo, que é utilizado ao máximo, não me surpreende a pessoa querer sair disso”, acrescenta.   

Com passagem pelo clube Vasco da Gama e atualmente coordenadora do departamento médico do Botafogo, ambos do Rio de Janeiro, Daniela Hauila explica que o desafio da medicina do esporte é evitar lesões pelo desgaste inevitável. “A medicina do exporte preconiza o diagnóstico precoce de lesões, incluindo a parte hormonal. O preparo físico do atleta sempre é com sobrecarga, em tendões, músculos, cartilagens”, conclui.  

A médica do esporte Daniela Hauila no estádio do Botafogo, no Rio de Janeiro.
A médica do esporte Daniela Hauila no estádio do Botafogo, no Rio de Janeiro. © arquivo pessoal

Saúde mental e depressão

Para o fisioterapeuta Márcio Renzo, com pós-graduação em psicologia e psicanálise, o caso de Ashleigh Barty lembra os de outros atletas que causaram espanto ao admitirem dificuldades em suas carreiras.

“O caso dela é bem parecido com o do nadador Michael Phelps”, compara. O americano, que conquistou 37 recordes mundiais, não escondeu suas fraquezas. “Na Olimpíada de 2016, ele ganhou cinco medalhas de ouro e foi quando ele se pronunciou sobre a depressão que vinha sentindo e, neste ano, teve até pensamentos suicidas”, cita.

 

O nadador Michael Phelps após vencer a final dos 200m medley nos Jogos Olímpicos Rio-2016.
O nadador Michael Phelps após vencer a final dos 200m medley nos Jogos Olímpicos Rio-2016. AFP

“E como imaginar que um atleta como Michael Phelps, com 28 medalhas olímpicas, 23 de ouro, tem problemas de depressão? Ele é uma referência do esporte de alta performance, mas teve o problema também”, diz Renzo, antes de citar outro exemplo marcante. “A Simone Biles, com toda a expectativa que foi colocada em cima dela na Olimpíada de 2020, teve este mesmo problema, desistiu por causa da saúde mental”, acrescenta.

Preservar a saúde mental foi o principal motivo que fez a atleta da ginástica artística dos Estados Unidos Simone Biles desistir de cinco finais nas Olimpíadas de Tóquio. A ginasta diz ter abandonado a competição para não afetar o desempenho das companheiras de equipe.

“O problema está na idealização. Você acha que o atleta de alto nível tem a mente blindada, mas, na verdade, há uma subnotificação muito grande porque é um tabu essa questão da saúde mental na sociedade e dentro do esporte mais ainda”, comenta o especialista.

A ginasta Simone Biles nos Jogos Olímpicos Rio-2016.
A ginasta Simone Biles nos Jogos Olímpicos Rio-2016. AFP/Archives

Renzo observa que o peso maior recai sobre atletas de modalidades individuais. “Quando você tem um fracasso no coletivo, você acaba diluindo entre as pessoas, enquanto no individual, ela acha que a culpa de não alcançar as metas é toda dela”, afirma.

“A partir da Olimpíada de Tóquio a questão da saúde mental ficou mais nítida e o Comitê Olímpico distribuiu cartilhas informando sobre essa situação. E a gente vê como as federações americanas e inglesas tinham profissionais de saúde mental nas equipes”, observa.

Outra questão, alerta Renzo, é a pressão de patrocinadores. “Essa coisa de o atleta não poder falar porque pode ser prejudicado na carreira, colocado no banco, muitas vezes, ele acaba deixando o problema de lado. E tem a questão do patrocínio também. Assumir essa fraqueza, ter uma redução do seu desempenho, acaba tendo reflexo na questão financeira”, diz.

O especialista ensina a identificar os primeiros sinais de que algo não vai bem. "Os sinais são que os atletas começam a sentir aquele quadro depressivo, ou ficam ansiosos ou estressados demais. Demonstram irritabilidade. E eles tendem a acabar caindo para o uso de substâncias", diz o fisioterapeuta. "A equipe técnica tem que ter uma preocupação maior, tratar o atleta como uma pessoa. Valorizar o ser humano por trás do atleta", acrescenta. “Um pouco de ansiedade é normal, mas quando chega a desenvolver síndrome do pânico e outros quadros ansiolíticos e isso começa a afetar o rendimento, ele deve procurar ajuda profissional”, conclui.

Fisioterapeuta Márcio Renzo
Fisioterapeuta Márcio Renzo © arquivo pessoal

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