Esporte em foco

Navegadora brasileira alerta para derretimento do Ártico e riscos do aquecimento global

Publicado em:

Tamara Klink, filha do renomado velejador Amyr Klink, acabou de fazer a passagem noroeste do Ártico, uma das viagens mais difíceis do planeta. Aos 28 anos, ela se tornou a mulher mais jovem a atravessar aquele trecho em solitário.

A brasileira Tamara Klink faz a passagem noroeste do Ártico no barco Sardinha II.
A brasileira Tamara Klink faz a passagem noroeste do Ártico no barco Sardinha II. © Marin Le Roux
Publicidade

Marcio Arruda, da RFI em Paris

A brasileira também se tornou a primeira latino-americana a seguir os passos do norueguês Roald Amundsen, que fez a passagem noroeste com o barco Gjoa entre 1903 e 1906.

Após retornar dessa aventura em águas geladas, Tamara percebeu mudanças provocadas pelo aquecimento global.

“O gelo na passagem noroeste se forma e derrete todos os anos, mas o que está acontecendo agora é que tem mais gelo derretendo e por períodos mais longos", afirma a velejadora.

"Quando o Roald Amundsen fez a passagem, ele navegava um trecho e, logo depois, o mar congelava. Aí ele não conseguia mais navegar e tinha de esperar [o gelo derreter] para seguir navegando. A passagem que fiz agora, 120 anos depois do norueguês, eu encontrei gelo em apenas 9% do trajeto e era um gelo que dava para contornar sem muita dificuldade", acrescenta, apontando ainda os questionamentos que a situação traz. 

"E isso tem aberto novamente a discussão sobre se aquela rota deveria ou não ser utilizada por navios militares e cargueiros, já que é um caminho muito mais curto entre a Ásia e a Europa. Mas é preciso pensar que isso é um grande problema para os seres vivos que habitam a região e que são sensíveis a barulhos. Aquela região, que é muito sensível às mudanças climáticas, está aquecendo quatro vezes mais rápido do que o resto do planeta”, afirmou.

É preciso agir antes que seja tarde demais

E Tamara não parou por aí. A brasileira fez um alerta muito importante para o planeta.

“O gelo que tem lá, por mais que seja em menor quantidade do que no passado, é extremamente importante para refletir a radiação solar. Sem esse gelo, o mar vai absorver o calor; é como se a região se transformasse num painel solar gigante para absorver calor o dia inteiro. E isso contribuiria para que o Ártico, sem gelo, se tornasse um aquecedor natural do planeta. Aquela rota está se tornando cada vez mais navegável em função das mudanças climáticas e isso é péssimo. A gente não deveria festejar isso", afirmou.

"A gente deveria fazer tudo o que está ao nosso alcance para que isso não aconteça. Ou para que o gelo pare de diminuir ou volte a aumentar"

Tamara faz ainda em tom de alerta uma observação para a necessidade de um esforço global para diminuir as emissões de gases do efeito estufa.

"A partir do momento que não houver mais gelo, o Ártico vai começar a aquecer o planeta. E aí não vai ter mais nada que a gente possa fazer para que isso não aconteça. A gente vai entrar numa espiral onde o que a gente vai poder fazer será apenas diminuir a velocidade com que isso acontece; e não mais frear. Apesar de o Brasil estar longe geograficamente do Ártico, o nosso clima vai sofrer muito com essas mudanças. Não só a nossa economia vai ser afetada, mas vários biomas vão sofrer mudanças. A gente vai ter muito mais secas onde já tem seca e muito mais enchentes em lugares onde tem fortes chuvas. Então, vai ser um problemão para todos nós”, alertou.

Leia tambémGelo marinho nos polos atinge novo mínimo histórico, alerta observatório europeu Copernicus

A conclusão de Tamara Klink foi feita logo após a viagem em que a brasileira atravessou a passagem noroeste do Ártico. A navegadora passou dois meses sozinha no barco Sardinha II para completar a rota mais curta no hemisfério norte, ligando os oceanos Pacífico e Atlântico.

Um projeto de três anos

A jovem disse que trabalhou durante muito tempo até colocar em prática o projeto de fazer a travessia.

“A passagem noroeste é a conclusão de um projeto de três anos de navegação em solitário pelo Ártico. Eu decidi por esta travessia porque tenho grande interesse em mudanças climáticas e pela história da navegação polar. Eu sabia que muitos barcos tinham naufragado ali por causa da presença de gelo, mesmo durante o verão. Eu li vários livros sobre os desafios na localidade”, contou.

Apesar de fazer viagens sozinha no barco, a brasileira explicou que existe uma grande equipe para transformar o projeto em realidade.

“Eu estou sozinha no barco, mas é claro que a viagem só é possível porque tem muita gente envolvida em cada pedacinho do projeto e é por isso que eu consigo fazer estas viagens sendo novata e, relativamente, inexperiente. O mais importante do dia a dia da navegação é fazer o barco navegar com segurança da melhor maneira possível. Eu sei que o barco até pode chegar sem mim, mas eu não chego de jeito nenhum sem ele. A minha prioridade é que o barco esteja em bom funcionamento e navegando com segurança”, explicou a brasileira.

Dormindo em períodos curtos

Dormir é uma tarefa simples, mas para Tamara durante as viagens em solitário é um desafio que requer cuidados. Afinal, quando ela dorme embarcada, não tem mais ninguém para tomar conta do barco e agir em caso de emergência.

“Eu divido meu sono em períodos bem curtos, que podem ter no máximo 40 ou 50 minutos se eu tiver numa zona livre e navegando bem devagar. Por outro lado, pode ter cinco minutos se eu tiver numa zona com icebergs ou se eu precisar fazer alguma manobra e estiver cercada de pedras. No meio de tudo isso, eu encaixo os meus períodos de sono. Afinal de contas, eu preciso dormir para sobreviver e fazer minhas refeições. O sono é que dita o ritmo da navegação, com a meteorologia”, relevou Tamara Klink.

Um susto grande e peludo

Em um dos períodos curtos de sono, Tamara recebeu uma visita indesejada no barco.

“Eu parei numa baía para esperar uma janela para o tempo melhorar e ter uma corrente favorável para atravessar uma passagem que era bem apertadinha e com pedras. Ali eu encontrei outros barcos de amigos que fiz no caminho e que também estavam esperando para fazer aquela passagem. Eu me lembro de um barco de velejadores com uma família. Durante uma noite, o barco da família enviou uma comunicação via rádio falando que eles estavam vendo pela janela um urso que vinha na direção do meu barco. Aí eu fiquei com medo, claro, de ser comida", conta.

Ela contou como as sugestões de amigos a fizeram assustar o urso sem se machucar e nem ferir o animal.

"Enquanto o urso subia no meu barco, alguém teve uma ideia e pediu para eu ligar o motor. Consegui ligar o propulsor com a chave que estava dentro do barco e mexi no acelerador para fazer barulho. O urso se assustou e saiu do barco. Ele nadou em direção à embarcação das pessoas da Nova Zelândia, mas ele não conseguiu subir porque o barco deles era alto”, contou a brasileira.

A brasileira Tamara Klink flagra um urso polar nadando nas águas geladas do Ártico.
A brasileira Tamara Klink flagra um urso polar nadando nas águas geladas do Ártico. © Tamara Klink

Depois da inesperada e indesejada visita a bordo, Tamara revelou que ainda sente medo de fazer novas travessias marítimas em solitário. Porém, ela encara seus medos com mais critério.

“Hoje eu sei reconhecer melhor os medos e os perigos imaginários. Meu medo está mais controlado do que quando comecei. Antes eu tinha medo de um monte de coisas que só existiam na minha imaginação. Agora, eu tenho medo de coisas bem específicas. Eu não tenho medo de urso, por exemplo; eu tenho medo de que um urso suba no meu barco no momento que estou dormindo e ele esteja com fome. Não apenas de ver um urso. Eu tenho medo ao passar perto de um iceberg e eu não tenha margem de me afastar se ele capotar; não tenho medo de iceberg. Então, os medos estão um pouco mais precisos. Eles deixaram de ser imaginação e agora fazem parte da minha memória e da minha consciência”, explicou a navegadora.

Tamara Klink a bordo do Sardinha II nagegando ao lado de um iceberg durante a passagem noroeste do Ártico.
Tamara Klink a bordo do Sardinha II nagegando ao lado de um iceberg durante a passagem noroeste do Ártico. © Alice le Marec

Filha de peixe...

A coragem para enfrentar desafios no mar está no DNA de Tamara. Aquele velho ditado que diz que “filho de peixe, peixinho é”, se aplica com perfeição à navegadora de 28 anos. Na verdade, "filha de peixe". Tamara é filha do renomado navegador Amyr Klink, conhecido pelas travessias a remo do Atlântico Sul e pela viagem da Antártica ao Ártico.

Apesar do vínculo, Tamara contou que não teve ajuda do pai, mas que entende a negativa de Amyr para seus questionamentos quando ela decidiu seguir os passos do navegador brasileiro.

“Eu sou muito grata por ter tido a chance de nascer numa família de navegadores. Eu certamente não seria navegadora se não tivesse acesso aos relatos que me fizeram desejar navegar, até porque não tem nenhuma razão inteligente para que alguém deseje navegar (risos). É a maneira mais arriscada, mais sofrida e mais lenta de ir de um ponto a outro do oceano. Então, eu não teria tido essa ideia louca de ser navegadora não fossem as histórias contadas por meu pai. Sou grata a ele por ter me dito ‘não’ quando ele tinha todas as respostas das navegações que eu queria fazer. Ele disse que se eu quisesse navegar em solitário, eu precisaria construir o meu próprio caminho. Ele me deu zero conselho, zero centavo e zero contato”, contou Tamara Klink.

“Quando ele me disse ‘não’, ele me deu o direito de tentar e aprender; ter a certeza que vem dos privilégios de que, se tudo desse errado, eu teria a chance de voltar para algum lugar”, explicou. “Eu entendo a decisão do meu pai e agradeço muito porque aquela negativa me deu liberdade e o direito de errar”, completou Tamara Klink, a mulher mais jovem a atravessar em solitário a passagem noroeste do Ártico.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI