Reportagem: como a Suécia se tornou um laboratório mundial de bairros sustentáveis
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A Suécia, um dos países mais desenvolvidos do mundo, também está na ponta da inovação para tornar as cidades mais sustentáveis. O país é pioneiro no planejamento de bairros ecológicos – da reciclagem e reutilização do lixo ao tráfego urbano, da autossuficiência em energia à ampliação dos espaços verdes, tudo é pensado para limitar as emissões de CO2 e a degradação ambiental.
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Lúcia Müzell, enviada especial a Estocolmo
A RFI visitou dois bairros modelos de Estocolmo, escolhida a primeira capital verde europeia em 2010. A transformação do primeiro deles, Hammarby Sjöstad, se iniciou há 30 anos e já passa por novas modernizações, para se tornar neutro em emissões de gases de efeito estufa até o fim da década.
O segundo, Stockholm Royal Seaport, ainda está em construção e almeja ser ambientalmente positivo até 2040. Isso significa estar livre dos combustíveis fósseis e produzir mais energia do que consome, graças aos painéis fotovoltaicos espalhados pelos telhados e fachadas dos prédios, a uma maior eficiência energética e à transformação do lixo em biocombustível, utilizado para o aquecimento dos imóveis durante os dias frios.
Em um país nórdico com temperaturas glaciais durante boa parte do ano, a melhor época para visitar os dois bairros é a primavera, quando uma parte crucial dos projetos, ter ao menos 40% de áreas verdes, pode ser apreciada.
Em poucos metros de caminhada, a diferença é sentida pelos olhos e ouvidos. Bicicletas, patinetes e carrinhos de bebê tomaram, literalmente, o espaço outrora ocupado por carros e ônibus barulhentos. No Stockholm Royal Seaport, a meta é cortar a circulação de veículos motorizados em pelo menos 40% – e a maioria deles já são elétricos.
Numa tarde ensolarada, os suecos se dão ao direito de trabalhar nas praças, que se sucedem a cada esquina nestes bairros. Os longos trechos à beira do Mar Báltico são os preferidos dos praticantes de esportes e para passeios em família.
"Estamos mais próximos da água, da natureza, o que é muito bom. Todos estamos muito preocupados com o que está acontecendo com o meio ambiente”, comenta Katarina, funcionária de uma multinacional sediada em Estocolmo e que escolheu morar em Hammarby Sjöstad há sete anos.
"Aqui é bacana. Nós temos um ótimo transporte, então não precisamos de carro”, diz a moradora Daiana, enquanto passeia com as duas filhas pequenas. "Sabemos o quanto as pessoas estão estragando a natureza, então é muito importante para mim ser consciente sobre isso e tomar atitudes para diminuir o nosso impacto ambiental.”
Ruas em escala humana
Nesta lógica em que os carros e caminhões não são bem-vindos, as ruas foram planejadas para receber mais pedestres. Elas não têm meio-fio nas calçadas, que dificultam a circulação das pessoas, e os acessos aos transportes públicos são facilitados. Os espaços para estacionamento são limitados – para dar lugar às ciclovias.
A rua assume a escala humana, e não mais das máquinas. Os acessos aos transportes públicos também são facilitados: em vez de escadas, rampas, escadas rolantes.
A dinâmica de proximidade é outro ponto alto dos bairros sustentáveis, planejados para ter serviços e comércios a no máximo 200 ou 400 metros de distância de qualquer residente – assim, os deslocamentos a pé acabam privilegiados. A economia circular também é estimulada, com hortas comunitárias e lojas de revenda de produtos usados.
"É muito bom morar aqui, especialmente para as crianças. Você tem tudo: comércios, parquinhos, a natureza. E é muito perto do centro da cidade”, atesta Jacob, há três anos em Royal Seaport.
“Acho que ainda não reciclamos o suficiente e que podemos comprar menos. Eu tenho tentado comprar cada vez mais objetos de segunda mão”, afirma Daiana.

Quatro lixeiras em casa
Em casa, os moradores já se habituaram a separar o lixo em quatro diferentes compartimentos: papéis e plásticos, metais, dejetos alimentares e os que não se enquadram nas categorias anteriores, como fralda descartável.
"Estamos tentando combater o problema da poluição cuidando do nosso lixo de uma maneira sustentável”, observa o desenvolvedor Léon Martinez, outro morador de Hammarby Sjöstad, afirmando ter sido fácil se adaptar ao sistema.
Separados, os resíduos são aspirados por uma rede quilométrica subterrânea, que encaminha cada tipo de material para o respectivo centro de tratamento. Os caminhões de lixo circulando na superfície pertecem, portanto, ao passado.

O projeto prevê um máximo de 1,5 quilo de lixo residual – que não pode ser reciclado – por habitante, por semana. Os restos de alimentos viram biocombustível. O calor dos líquidos residuais do lixo é reaproveitado na rede de calefação e como adubo para as plantas. Da mesma forma, a água usada é reaproveitada para a irrigação dos jardins, dentro do objetivo de o uso de água ser 30% menor nestes bairros, na comparação com o resto da cidade.
"Você tem fazer com que seja algo legal separar o lixo, que seja fácil. Você tem que fazer ser possível trabalhar mais de casa”, recomenda Sofie Pandis Iveroth, autora de uma tese de doutorado que se tornou referência nos estudos sobre o bairro pioneiro de Estocolmo, e especialista sênior em cidades sustentáveis do grupo Anthesis. "Você pode fazer com que seja possível plantar alguns legumes ali mesmo no seu bairro e, desta forma, você talvez encurte a distância entre os humanos e a sua dependência da natureza”, exemplifica.
Melhorias em curso
É claro que nem tudo saiu como planejado – após 20 anos, a queda de consumo energético em Hammarby Sjöstad não foi de ao menos 40% por morador, como esperado, mas de cerca de 30%. As falhas no projeto original deram origem a iniciativas cidadãs para aumentar a ambição ambiental, como o Electricity. A organização, que reúne associações de moradores, especialistas e empresas públicas e privadas, é focada em dar mais ênfase à transição para a mobilidade elétrica – menos poluente – e à economia circular.
"Quando fomos morar lá, achamos que não era tão bom quanto poderia ser. Então iniciamos o projeto Hamarby Sjöstad 2.0, trazendo as últimas inovações climáticas e tentando torná-lo ainda melhor do que já era”, conta Rickard Dahlstrand, CTO da organização.
Até os anos 1990, toda a região era uma zona portuária poluída e degradada da cidade. Atualmente, cerca de 25 mil pessoas vivem no bairro, que continua a se expandir.
"Analisamos a questão energética das bases do prédio até o telhado. Tinha muitas coisas erradas, que fomos conseguindo consertar e resultaram em economias para todos. Diminuiu muito, por exemplo, o desperdício de aquecimento dos apartamentos”, sublinha, referindo-se ao gasto que mais pesa não só na conta de energia, como na pegada de carbono das famílias.
O isolamento térmico de vários prédios passou por reformas, que incluíram ainda um novo sistema de reaproveitamento e estocagem do próprio calor. "Microrredes” foram estabelecidas para compartilhar a calefação entre um grupo de imóveis vizinhos, explica Dahlstrand. Os moradores podem acompanhar os detalhes do consumo energético em tempo real, por um aplicativo no celular.

Cada cidade encontra o seu modelo
Para Sofie Pandis Iveroth, o grande legado do primeiro bairro ecológico da Suécia, e um dos primeiros do mundo desenvolvido, foi introduzir uma visão holística sobre os desafios ambientais em uma área urbana. Cada cidade, insiste, tem seus próprios potenciais a serem desenvolvidos.
“Nós temos que pensar em como sustentar todo o sistema, e não só os prédios. As soluções em Hamarby e Royal Seaport são tecnicamente focadas – e é claro que você precisa de técnicas para desenvolver um bairro sustentável, mas eu acho que tudo depende de como você está olhando para este bairro para torná-lo mais sustentável do que ele é”, indica a especialista. "Muitas vezes, pega-se uma solução de uma parte do mundo e tenta-se transportá-lo para um outro contexto, sem parar para pensar no que já tem ali e o que pode ser feito.”
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