Os 400 anos de Molière vistos do Brasil

Adaptação de "O Doente Imaginário" ressuscita Molière no Brasil

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“O Doente Imaginário” é uma das peças de Molière mais encenadas recentemente na cena brasileira. A montagem do Grupo Galpão “Um Molière Imaginário”, no final dos anos 1990, foi um marco. Outra adaptação relevante foi o “Senhor Dodói” dos Doutores da Alegria, de São Paulo, em 2009.

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"Um Molière Imaginário", adaptação de "O Doente Imaginário" do Grupo Galpão, estreou em 1997 e ficou em cartaz durante 12 anos.
"Um Molière Imaginário", adaptação de "O Doente Imaginário" do Grupo Galpão, estreou em 1997 e ficou em cartaz durante 12 anos. © Grupo Galpão
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Nenhum levantamento preciso foi feito para saber exatamente quantas adaptações de “O Doente Imaginário” de Molière foram encenadas no Brasil desde que os textos do autor francês começaram a chegar ao país, em meados do século 18. Mas uma olhada nas programações culturais das últimas décadas mostra que a última peça escrita pelo dramaturgo é uma das mais presentes nos palcos do país.

“Um Molière Imaginário”, do Grupo Galpão, é uma das adaptações mais emblemáticas da cena teatral brasileira contemporânea. A versão da trupe mineira de “O Doente Imaginário” ressuscita Molière no Brasil. O dramaturgo francês, que também era ator, fazia o Argan, o papel principal, quando passou mal em cena na quarta apresentação da peça em fevereiro de 1673, e morreu logo em seguida.

O Galpão, um dos grupos de teatro mais importantes do país, já tinha encenado outros clássicos, como Romeu e Julieta de Shakespeare, e “encontrar Molière era inevitável”, diz Eduardo Moreira, diretor de “Um Molière Imaginário”.

"Um Molière Imaginário" foi um dos maiores sucessos do Grupo Galpão, uma das companhias de teatro mais importantes do Brasil.
"Um Molière Imaginário" foi um dos maiores sucessos do Grupo Galpão, uma das companhias de teatro mais importantes do Brasil. © Grupo Galpão

“O Galpão sempre foi caracterizado por um teatro de rua popular, com uma comunicação muito forte com o público. Evidentemente que a gente tinha de passar pelo Molière. Ele é um mestre da comédia, o cara que elaborou a comédia clássica de uma maneira brilhante e um crítico social brilhante também. Ele é um autor extraordinário, que pega toda essa herança do teatro popular”, acredita o também ator e fundador do Galpão. “Somos bisnetos do Molière”, sentencia.

Sucesso popular

A montagem do grupo mineiro, pensada para ser apresentada na rua, estreou em 1997 e foi um sucesso. Ela ficou em cartaz durante quase 12 anos, foi encenada em praças públicas e teatros de 120 cidades brasileiras e de 4 países. Mais de 286 mil pessoas assistiram “Um Molière Imaginário”.

“Era uma peça muito divertida. Talvez, um dos motivos para ela ter ficado tantos anos no repertório tenha sido a grande cumplicidade com o público. A rua traz muito isso. Muitas vezes, a maioria do público nunca tinha visto teatro. Quantas cidades no Brasil têm um teatro? A montagem de rua ajudou a perpetuar o Molière”, conta a atriz Fernanda Vianna, que fez a Rainha Mab, personagem integrada à versão mineira de “O Doente Imaginário”.

Para Eduardo Moreira, esse sucesso é “um atestado da enorme vitalidade dramatúrgica do Molière”. O espetáculo mistura circo, teatro e música, dialogando com elementos da cultura brasileira. “A gente tinha, de certa maneira, essa ideia de traduzir o Molière a partir de uma chave brasileira”, lembra o diretor.

Eduardo Moreira, diretor de "Um Molière Imaginário", ator e fundador do Grupo Galpão.
Eduardo Moreira, diretor de "Um Molière Imaginário", ator e fundador do Grupo Galpão. © RFI/Adriana Brandão

Memórias póstumas

A peça começa com o funeral do dramaturgo francês na rua e a cada nova apresentação ele é ressuscitado pela Rainha Mab, a Rainha dos Sonhos. “Como era um defunto que voltava à vida, tinha um parentesco muito grande com o Brás Cubas, do Machado de Assis, essa coisa de um defunto que reconta sua vida”, indica o diretor. Ele ressalta a “capacidade antropofágica” que é uma característica interessante da cultura brasileira.

O ressuscitado Molière do Grupo Galpão conversa com o personagem principal Argan, o doente imaginário: um velho hipocondríaco, ludibriado por doutores charlatães, que tenta casar a filha com um médico. “Meu personagem, quando descobre que o Molière morreu encenando a peça fica em crise com o autor”, revela o ator Rodolfo Vaz. Ele concebeu um Argan “clownesco”. “Foi um dos melhores personagens que já fiz”, assegura.

Atriz Fernanda Vianna e ator Rodolfo Vaz.
Atriz Fernanda Vianna e ator Rodolfo Vaz. © Adriana Brandão/ RFI

“Molière teve um grande público e foi conhecido por um grande público que de fato desconhecia” sua obra, exalta Rodolfo Vaz.

Mas esse Molière brasileiro é um mito na opinião do professor de teatro Walter Lima Torres Neto. “Não é o Molière histórico. A apropriação que eles fazem de um Molière Imaginário ilustra que para nós brasileiros, para a cultura teatral brasileira, o Molière é muito mais esse mito. (...) Alguém que dedica, consagra sua vida à arte. Essa figura heroica é um pouco o Molière brasileiro”, analisa o professor da Universidade Federal do Paraná.

Senhor Dodói

Outra montagem bem brasileira de “O Doente Imaginário” é o “Senhor Dodói” dos Doutores da Alegria, um grupo de atores-palhaços que há 30 anos leva teatro e diversão para crianças hospitalizadas. O espetáculo estreou em 2009. A ideia da adaptação do clássico de Molière para o público infanto-juvenil nasceu dentro dos hospitais, mas o “Sr. Dodói” foi apresentado em teatros de São Paulo e ficou em cartaz três anos.

“Como o Molière tem esse jeito ácido de fazer crítica, eu achava tão interessante poder falar para os médicos aquilo que o Molière falava”, aponta Angelo Brandini, palhaço dos Doutores da Alegria, adaptador e diretor de o “Sr. Dodói”.

A peça é uma versão condensada, clownesca e com muita música. Ela integra vários elementos que surgiram da interação dos Doutores da Alegria com as crianças doentes dentro dos hospitais. “Eu preciso misturar, juntar muita coisa para compactar essa história e esse conceito de antropofagia para mim é muito importante”, esclarece Angelo Brandini.

O diretor tem certeza que, mesmo 400 anos depois, os temas tratados por Molière continuam atuais. A desconfiança na medicina revelada pela pandemia de Covid é uma das provas dessa atualidade. “Se não fosse assim, não estaríamos aqui falando dele 400 anos depois. Se você pegar os textos do Molière, você percebe que não mudou nada. Assim como o Shakespeare, ele fala da essência humana. O Molière é o Shakespeare da comédia”, compara Angelo Brandini.

Angelo Brandini, diretor e adaptador de “Sr. Dodói”, peça do Doutores da Alegria
Angelo Brandini, diretor e adaptador de “Sr. Dodói”, peça do Doutores da Alegria © Adriana Brandão/ RFI

Nem o Galpão, nem o Doutores da Alegria planejam remontar neste ano suas adaptações de “O Doente Imaginário” para festejar os 400 anos de Jean-Baptiste Poquelin, conhecido como Molière. Vários motivos, como a pandemia, as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna e do bicentenário da Independência, as eleições, acabaram ofuscando o aniversário do dramaturgo francês. “A ficha não caiu, mas está de parabéns o Sr. Molière pelos seus 400 anos”, festeja Rodolfo Vaz.

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