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França está mais atrasada que Brasil no debate sobre legalização da maconha, diz Sidarta Ribeiro

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Depois de colocar a legalização e uso medicinal da maconha no centro do debate no Brasil, o neurocientista e biólogo brasileiro Sidarta Ribeiro passa a defender esses temas também na França. O livro dele “As flores do Bem: a ciência e a história da libertação da maconha”, lançado no Brasil em 2023, acaba de ser traduzido e publicado na França pela editora Anacaona.

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O neurocientista Sidarta Ribeiro
O neurocientista Sidarta Ribeiro © Adriana Brandão
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O renomado neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, especialista em sono, sonhos e memória, é professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, instituição que ajudou a fundar.  

“As Flores do Bem” (Fósforo, 2023) é um livro autobiográfico. A obra traz reflexões que abordam desde o cultivo ancestral da cannabis até o debate contemporâneo sobre seu uso medicinal e recreativo, passando pela onda de proibição global da planta no século 20, motivada em grande parte por um “pânico moral”.

Em francês, o livro chega às livrarias com o título “Les fleurs du bien, la sicence et l’histoire de la libération du cannabis”. A versão francesa ganhou duas novas partes: uma advertência e um posfácio para contextualizar o debate sobre a legalização e o uso medicinal da maconha no país. Sidarta Ribeiro, que veio a Paris para o lançamento do livro, garante que “a França está ainda mais atrasada do que o Brasil”, nesse debate.

“Pânico moral”

“A França continua com um grande pânico moral em torno da maconha, da maior parte dos constituintes da maconha. A exceção é feita a uma molécula chamada canabidiol, que já está legalizada aqui”, explica

O uso da maconha tem de ser regulamentado e não proibido, defende. “A proibição promove um super encarceramento com viés racial”, salienta. Existem grupos de risco, para os quais o uso é desaconselhado, e, como qualquer produto, o consumo em excesso faz mal.

“Todas as substâncias são potencialmente perigosas. Todas as substâncias têm grupos de risco. Nem todo mundo pode consumir álcool, nem todo mundo pode consumir leite. Isso não quer dizer que a gente deva proibir o álcool ou leite”, ressalta.

Pesquisas, muitas delas brasileiras, comprovam os benefícios da maconha para combater uma série de doenças, como a epilepsia, aponta a obra. “A cannabis vai representar para a medicina do século 21 o que os antibióticos representaram no século 20”, acredita o neurocientista.

Leia ou clique na imagem principal para assistir a entrevista completa de Sidarta Ribeiro.

RFI: O Brasil, como você escreve no primeiro capítulo do livro, está muito atrasado em relação a esse debate sobre a legalização e o uso medicinal da maconha, apesar de alguns avanços conquistados. Qual o interesse de lançar esse livro também aqui na França?

Sidarta Ribeiro: A França está ainda mais atrasada do que o Brasil. A França continua com um grande pânico moral em torno da maconha, da maior parte dos constituintes da maconha. A exceção é uma molécula chamada canabidiol, que já está legalizada aqui. Existe uma percepção pública na França de que a maconha não é uma planta medicinal, de que ela é uma coisa extremamente perigosa. Isso é perigoso para a sociedade francesa, porque promove superencarceramento com viés racial. E acho que esse livro pode ajudar a oxigenar esse debate.

Mas no Brasil ainda não continua essa percepção de que a maconha é potencialmente perigosa?

Todas as substâncias são potencialmente perigosas. Todas as substâncias têm grupos de risco. Nem todo mundo pode consumir álcool, nem todo mundo pode consumir leite. Isso não quer dizer que a gente deva proibir o álcool ou leite no Brasil. Houve uma grande transformação na opinião pública nos últimos 10 anos e hoje a maior parte das pessoas, 2/3 da população pelo menos, são a favor do uso medicinal da maconha, e não apenas de uma molécula da maconha. Por outro lado, ainda existe pânico moral e muitas pessoas consideram que é plenamente legítimo utilizar a maconha para curar algum tipo de dor ou doença, mas não é legítimo consumir a maconha para escutar música.

No Brasil, a questão do consumo medicinal da maconha não passa principalmente por ações na justiça?

Passa pela justiça. Muitas pessoas têm autorização judicial para fazer o plantio em casa. É o meu caso, inclusive. Eu utilizo a maconha ou óleo de cannabis de modo terapêutico. Mas eu diria que houve um imenso avanço no Brasil de fato, não apenas por essas iniciativas individuais, mas por iniciativas coletivas, através das associações de pacientes, de familiares de pacientes, mães, pais, avós, avôs, que se engajaram politicamente para conquistar o direito de defender a legalização da maconha e, de fato, conquistar o direito de fazer um plantio. Hoje é possível fazer um plantio de até 6 plantas fêmeas em casa sem ser considerado um traficante. Isso tem modificado bastante a percepção pública. São muitos programas de televisão em rede nacional mostrando os benefícios da maconha para a epilepsia, para dores neuropáticas, para espasticidade, para espasmos e várias outras utilizações que vão se tornando mais populares, que têm a ver sobretudo com o envelhecimento. Maconha, como eu digo no meu livro, a não ser em casos de indicações médicas, ela não é para jovens. Ela é para adultos e, sobretudo, para idosos.

Você diz no seu livro, a cannabis vai representar para a medicina do século 21 o que os antibióticos representaram para o século 20?

Essa é uma opinião que não é só minha. Ela foi defendida por muitas pessoas ao longo do tempo, porque reconhecemos que a maconha possui múltiplas indicações, que é o caso da penicilina, e ao mesmo tempo é muito barata. A maconha é uma planta. Ela pode estar do lado da carqueja, do boldo, do alecrim. As pessoas podem e devem utilizar a maconha de maneira terapêutica e de uma forma fitoterápica, não necessariamente passando pela indústria. Isso não quer dizer que ela seja uma panaceia, que ela seja boa para todo mundo. Assim como você pode fazer um bom uso da penicilina, você pode fazer um mau uso da penicilina. Isso é o caso da cannabis. O livro entra em detalhes sobre esses grupos de risco que devem sim ser protegidos, seja de uma maconha com altos teores de THC ou com baixos teores de CBD, porque as pessoas são diferentes, nossas genéticas e também nossas histórias de vida são diferentes. Assim, também as maconhas. Não há uma única variedade de maconha, são centenas, talvez milhares. O livro busca, portanto, esclarecer o debate para que a gente saia do proibicionismo tacanho que causa tanto mal à sociedade com essa guerra contra a maconha, que na verdade é uma guerra contra pessoas vulneráveis, que a gente possa caminhar para uma visão mais científica, que aliás é a posição da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, de que essa substância é de fato uma herança maravilhosa de nossos ancestrais. É uma invenção humana feita para satisfazer necessidades humanas, que precisa de uma boa regulação. A maconha é benéfica para muitas pessoas e, assim como toda substância, existem algumas pessoas que não deveriam ter contato com certas formas dela. E a única forma que a gente tem de proteger os cidadãos é esclarecendo cientificamente esse debate.

Você escreve que a questão da proibição é histórica. Por que você diz que ela está baseada em uma discriminação de raça e interesses econômicos?

A maconha foi proibida por iniciativa dos Estados Unidos, com uma ajuda providencial do Brasil e do Egito. Nos anos 1920, estavam fazendo o debate da proibição do ópio e os Estados Unidos queriam proibir a maconha por razões comerciais. Por um lado, queriam tirar o cânhamo do mercado para abrir espaço para o algodão e, depois, para o nylon. Por outro lado, por questões raciais. Criminalizar a populações negras e, no caso dos Estados Unidos, mexicanos. No Brasil, isso teve muito eco porque a elite patriarcal branca dominante queria embranquecer o Brasil, queria que aqueles homens e mulheres, negros e negras, que terminavam o dia e faziam o uso do ‘Pito de Pango’, que era o nome que a maconha recebia, deixassem de fazê-lo porque não estavam disponíveis para mais trabalho. Então, uma justificativa extremamente racista, extremamente exploradora desse capital humano tão aviltado, que persiste até hoje porque existe um pânico moral em torno da maconha, porque (segundo essa percepção) ela deixa as pessoas ‘preguiçosas’. Qual que é o problema de a pessoa trabalhar o dia inteiro, chegar em casa e relaxar? Não, ela vai ficar preguiçosa. Evidentemente que isso tem um cunho racista.

E qual seria o cenário o ideal? A legalização da maconha em todo o mundo, como já acontece em uma dezena de países, entre eles os Estados Unidos?

É uma tendência global. A maconha é uma planta milenar. Ela tem 12.000 anos de coevolução com seres humanos. Foram nossos ancestrais na China, depois na Índia, Pérsia, chegando à Turquia, ao norte da África, Europa e depois à América, que ao longo de muitas gerações foram selecionando essas variedades. Há maconhas que são muito boas para você realizar trabalho físico, outras para o trabalho intelectual, outras para uma conexão espiritual, outras para o prazer erótico, outras para o descanso, para o sono de boa qualidade. Tudo isso é uma herança que foi jogada fora, que foi vilipendiada e que agora vem sendo resgatada. Não é à toa que os Estados Unidos, Canadá, Uruguai, Portugal, Alemanha, Israel já transformaram suas legislações para incorporar novamente a maconha a suas farmacopeias. A França é um país muito importante para o avanço do pensamento global e não pode se manter na posição que está hoje. A França é um país que glorifica certas substâncias, por exemplo álcool, e ao mesmo tempo demoniza outras, como é o caso da cannabis.

Você faz um alerta nesse livro para o risco desse movimento pacifista e civil ser apropriado pela indústria. Que risco é esse?

Essa é uma ótima questão. Os proibicionistas, digamos menos informados, vão negar as propriedades medicinais da maconha. Eles gostam de compará-la com o veneno de certas víboras, serpentes venenosas, em que uma molécula é útil a medicina, mas o resto é muito perigoso. A maconha evidentemente não é o veneno da jararaca. Mas existe uma outra vertente, um pouco mais sofisticada, que vai dizer que a maconha é como o césio, o plutônio ou substâncias radioativas que são muito úteis, mas que precisam ser extremamente controladas. Isso cria um pânico moral que vai justificar o quê? Que a cessão dos direitos de produção da maconha sejam apenas da indústria, da grande indústria, que vai poder arcar com os custos de ter paredes duplas e triplas, todo tipo de regime de segurança, código QR identificando cada planta, plena rastreabilidade, quando na verdade, como disse antes, é uma planta que deveria estar do lado do alecrim, da carqueja, do boldo. Nada contra que a indústria produza fármacos à base de cannabis. Aliás, a França foi uma pioneira nisso. No século 19, antes da França entrar em pânico com relação à maconha, ela vendeu maconha vinda do Marrocos para todo o planeta. Mas é preciso que a gente entenda que as pessoas têm que ter direito a outros tipos de relação com essa planta. Como é que uma planta medicinal de 12.000 anos não pode ser plantada em casa? Como é que eu não posso ter uma cooperativa, um clube, uma associação de pacientes que possa fazer isso sem lucro e entregar toda essa herança milenar nas mãos de apenas uns poucos bilionários? Isso não faz o menor sentido e não serve à saúde pública.

E o uso recreativo?

Eu faço essa problematização no livro. A maconha produz um relaxamento, produz um certo tipo de estado de contemplação que é muito adequado às artes, à filosofia, à poesia, ao contato humano, à música, como eu falo muito do Louis Armstrong, como (a maconha) foi importante na própria invenção do improviso no jazz. De certa maneira, isso mostra como nós temos uma carga pesada de culpa cristã, por que como pode a maconha ser aceita como remédio, mas não ser aceita como algo que pode melhorar a sua experiência vendo um filme, por exemplo, assistir uma peça de teatro, conversando com uma amiga, com um amigo? Existe um pânico moral, que é moral mesmo, que diz respeito a proibir o prazer, a proibir as coisas que são gostosas. Eu gosto de dizer que aquilo que é recreativo, já é em si um pouco terapêutico.

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