PCC já opera na Europa além do tráfico de drogas e autoridades ainda minimizam o risco
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A recente operação da Polícia Federal (PF) brasileira, batizada de Carbono Oculto, revelou uma faceta alarmante da evolução do Primeiro Comando da Capital (PCC). Segundo Roberto Uchôa, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o grupo deixou de ser apenas uma organização de narcotráfico para se tornar um verdadeiro “conglomerado criminoso empresarial”, com atuação global e crescente influência em mercados legais, inclusive na Europa.

“O que ocorre é que essa metamorfose que eu assim chamei do PCC, ela não foi rápida, não foi momentânea. É um processo longo”, explica Uchôa, que atua como consultor especializado em crime organizado, controle de armas de fogo e políticas de segurança pública no Brasil.
Fundado nos presídios paulistas como uma irmandade para proteger criminosos da violência do sistema penitenciário, de abusos de autoridade e de tortura, o PCC expandiu sua atuação para fora das cadeias, dominando o tráfico de drogas e, posteriormente, o comércio internacional de entorpecentes.
A facção ganhou força financeira ao controlar toda a cadeia do narcotráfico – da produção à remessa internacional. “É a partir daí que começa a entrada do PCC na Europa, na África Ocidental e em outros países”, afirma Uchôa. Dados do Ministério Público de São Paulo indicam que o grupo já está presente em 28 países, muitos deles europeus.
Do tráfico à lavagem de dinheiro em mercados legais
Segundo Uchôa, há uma percepção equivocada por parte das autoridades europeias de que o PCC atua apenas como fornecedor de drogas em larga escala – o chamado “atacado” do narcotráfico.
“Nesse momento, o PCC está focado no transporte internacional da droga, especialmente para a Europa. A venda, no varejo, é feita por organizações locais”, explica. Essa estrutura faz com que o grupo pareça menos ameaçador, já que não está diretamente envolvido em atos violentos ou em confrontos urbanos no continente.
“Por isso, muitos ainda enxergam o PCC como uma organização criminosa brasileira focada exclusivamente no narcotráfico, sem grande impacto sobre o sistema financeiro ou sobre a segurança pública europeia”, observa Uchôa. No entanto, essa visão superficial ignora uma transformação profunda e estratégica da facção.
A operação Carbono Oculto, realizada no Brasil, revelou que o PCC já ultrapassou a fronteira do tráfico e passou a atuar intensamente nos mercados legais.
“O tráfico de drogas foi, inicialmente, uma forma de capitalização. Depois, o dinheiro passou a ser lavado em mercados ilegais. E, num terceiro momento, o PCC percebeu que o mercado legal não só serve para lavar dinheiro, mas também para gerar lucro direto na ilegalidade”, detalha.
Essa nova fase inclui atividades como contrabando de cigarros, adulteração de combustíveis e garimpo ilegal. “São várias as formas de atuação que o PCC passou a explorar no Brasil, e o risco é que esse modelo seja replicado na Europa”, alerta Uchôa.
A presença da facção em países europeus, como Portugal, já começa a mostrar sinais dessa expansão. “O PCC tem adquirido estabelecimentos comerciais, imóveis e até se falou em investimentos em times de futebol. Isso é um alerta claro”, afirma. Ele adverte que, se não houver uma resposta firme, o grupo pode começar a distorcer o mercado legal europeu da mesma forma que fez no Brasil – comprando postos de combustíveis, por exemplo, para lavar dinheiro em operações que envolvem grandes volumes de dinheiro vivo.
“Esse é o perigo: tratar o PCC apenas como uma organização de tráfico, quando na verdade ele está se infiltrando nos mercados legais e criando distorções profundas. O exemplo brasileiro precisa ser levado a sério pelas autoridades europeias”, enfatiza.
Europa sob risco: o caso português
Em Portugal, a presença de uma grande comunidade brasileira no país facilita a atuação da facção. Uchôa destaca uma operação recente que exemplifica essa complexidade. “O governo português, em parceria com a Polícia Federal brasileira, desmantelou um esquema de corrupção no Consulado Português do Rio de Janeiro. Integrantes do PCC e do Comando Vermelho pagavam funcionários do consulado para obter documentos de nacionalidade falsificados. O objetivo era permitir que membros dessas organizações se fixassem legalmente em Portugal.”
Esse episódio levou as autoridades portuguesas a intensificarem a cooperação com o Brasil. “Foi firmado um acordo de troca de informações entre o governo português, a Polícia Federal e o governo brasileiro. Isso mostra que há uma preocupação crescente com a presença do PCC em território europeu”, afirma Uchôa.
Segundo ele, Portugal se tornou não apenas uma porta de entrada estratégica para a cocaína transportada pelo PCC, mas também um palco de operações cada vez mais diversificadas. “O PCC já atua em crimes digitais, lavagem de dinheiro e operações logísticas. Há muitas investigações em curso”, revela.
Uchôa cita um caso emblemático que demonstra o nível de sofisticação das operações da facção. “Recentemente, a polícia portuguesa prendeu em Lisboa um operador do PCC responsável por recuperar drogas submersas antes que os navios atracassem no porto. Na casa dele foram encontradas armas de fogo e motos subaquáticas. Ele podia mergulhar até os navios para extrair a carga. Isso mostra o grau de especialização e investimento logístico da organização.”
Apesar dos avanços, Uchôa acredita que ainda há espaço para maior vigilância.
“Portugal está um passo à frente do resto da Europa nesse sentido, porque já está alerta para o problema – não tanto quanto deveria, mas já está”, afirma.
Cooperação internacional e entraves políticos: o combate global ao PCC
Apesar dos avanços na cooperação entre Brasil e Portugal, Uchôa aponta que a arquitetura global de combate ao crime transnacional ainda está longe de ser ideal. “O Brasil, curiosamente, consegue operar internacionalmente muito melhor essa questão do combate ao tráfico de armas e ao crime transnacional do que internamente”, afirma.
Segundo ele, a fragmentação entre forças policiais e órgãos de investigação dentro do país dificulta ações coordenadas. “O que chamou atenção na operação Carbono Oculto foi justamente o sucesso de uma integração que, infelizmente, não é comum no Brasil.”
No cenário internacional, a Polícia Federal brasileira tem se destacado por sua estrutura de atuação. “A Polícia Federal tem adidos em diversas embaixadas, que fazem esse trabalho de conexão com autoridades locais. Em alguns países, como Portugal, essa cooperação é ainda mais profunda, com troca direta de informações”, explica Uchôa.
No entanto, ele alerta para um obstáculo político que compromete a eficácia do enfrentamento ao PCC fora do Brasil: a relutância em reconhecer a dimensão internacional do problema.
“Recentemente, durante uma visita a Portugal, o ministro da Justiça e o diretor-geral da Polícia Federal afirmaram que o PCC não é ainda motivo de alarme para Portugal e para a Europa. Essa declaração chamou atenção e foi rebatida pelo promotor Lincoln Gakiya, um dos maiores especialistas em PCC no Brasil, que vive sob escolta por conta das ameaças que recebe. Ele disse claramente: ‘Sim, já é um problema. E a gente precisa assumir isso para que o trabalho possa ser feito.’”
Para Uchôa, essa resistência tem raízes políticas. “Não estou dizendo que há envolvimento direto do ministro ou do diretor com o crime organizado. Mas há uma gestão diplomática envolvida, uma tentativa de não projetar o Brasil como um foco de instabilidade internacional. Só que, no micro, o problema já é muito real.”
Ele também aponta que o crime organizado brasileiro tem interesse direto em negócios estatais e influência política local. “O PCC, o Comando Vermelho e as milícias investem capital em campanhas políticas. Não se trata de criminalizar a política, mas de reconhecer que há financiamento de campanhas por organizações criminosas. Isso é uma realidade.”
Uchôa cita a operação Fim da Linha, realizada em São Paulo, como exemplo dessa infiltração. “O PCC, por meio de empresas, ganhou licitações de transporte público. Movimentava cerca de R$ 1 bilhão por ano com dinheiro da prefeitura, usando empresas de ônibus controladas pela facção. Além de desviar recursos públicos, usava o sistema para lavar dinheiro de outras fontes ilícitas.”
Segundo ele, para que isso ocorra, é necessário apoio político.
“Para o PCC, é muito mais interessante financiar um prefeito ou vereador local, que possa influenciar diretamente uma prefeitura, do que investir em campanhas de senadores ou deputados. O impacto da organização é muito maior no micro, nas operações locais.”
Diante desse cenário, Uchôa defende a criação de uma estrutura institucional dedicada ao enfrentamento do crime organizado. “O Brasil é um país com mais de 40 mil homicídios por ano, 80% deles cometidos com armas de fogo. Temos uma das maiores organizações criminosas do mundo, o PCC, e outra gigantesca, o Comando Vermelho. São mais de 80 facções atuando e milhões de pessoas vivendo em territórios sob domínio armado. Já que não temos um Ministério da Segurança Pública, deveríamos ao menos ter um órgão especializado com a função específica de atacar essas organizações criminosas brasileiras”, conclui.
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