Rendez-vous cultural

Ariane Mnouchkine apresenta "As comadres" com 20 atrizes brasileiras na França

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Na periferia do Rio de Janeiro, 20 mulheres entre 22 a 89 anos se reúnem em uma cozinha dos anos 1960, neste texto cult do premiado canadense Michel Tremblay. Germana, que ganhou um milhão de selos para compras na loteria, tem que colá-los em um catálogo para reformar sua casa, e para isso chama as "comadres", num musical que retrata a condição feminina contemporânea e que traz a assinatura de Ariane Mnouchkine, em sua primeira produção inteiramente concebida fora do Théâtre du Soleil.

A diretora francesa Ariane Mnouchkine assina a "supervisão" do espetáculo "As Comadres", com 20 atrizes brasileiras e texto do canadense Michel Tremblay, primeira peça inteiramente produzida pelo Théâtre du Soleil fora da França.
A diretora francesa Ariane Mnouchkine assina a "supervisão" do espetáculo "As Comadres", com 20 atrizes brasileiras e texto do canadense Michel Tremblay, primeira peça inteiramente produzida pelo Théâtre du Soleil fora da França. © FotoColetivoCLAP / Gabi Carrera
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Márcia Bechara, da RFI

Ela prometeu, e cumpriu. Quando o setor cultural brasileiro começou a se desesperar com os primeiro cortes e censuras ainda em 2018, logo após a eleição de Jair Bolsonaro, a célebre diretora francesa e fundadora do Théâtre du Soleil, Ariane Mnouchkine, declarou à RFI, numa entrevista direto do Japão, que pretendia "produzir artistas brasileiros e ajudá-los a se apresentarem na França". 

Em 2019, portanto, começa a aventura de "As Comadres" ["Les Belles-Soeurs", no título original em francês], uma adaptação musical do texto original do famoso autor canadense Michel Tremblay, sucesso dos anos 1970 que Ariane assistiu em Paris, em 2012, no Théâtre du Rond-Pont na adaptação musical de Daniel Bélanger, com direção de René Richard Cyr. Apoiando-se fielmente nessa encenação, Mnouchkine levou as atrizes a se apropriarem das situações, para dar vida à história. Modesta, Mnouchkine optou por assinar, na versão brasileira, apenas a "supervisão artística" da peça, que é fiel à mis-en-scène de Richard Cyr.

Uma particularidade chama a atenção nesse texto original de Tremblay, que rompe com os paradigmas do teatro canadense do Québec da época, extremamente elitista e ligado aos clássicos franceses: o texto original é todo escrito em "joual", espécie de dialeto da região, mistura do francês com expressões locais e um fortíssimo sotaque característico e imediatamente reconhecível pela comunidade francófona. Para a atriz e tradutora do texto para o português Julia Carrera, o desafio foi enorme. "Foi uma grande questão quando a gente começou a fazer o trabalho sobre o texto dessa peça. Que língua seria similar ou uma possibilidade para esse 'joual' para a qual não temos um similar brasileiro", lembra.

Confira a reportagem da RFI nas "entranhas" do Théâtre du Soleil:

"Então a Ariane me orientou a procurar palavras de várias regiões, a suprimir letras e sons dentros das palavras [em português], e a encontrar essa forma brasileira de dizer essa peça, sem que ela ficasse totalmente carioca, mesmo que a maioria do elenco seja do Rio de Janeiro. Mas que a gente pudesse encontrar também as personalidades desses personagens nessa linguagem", conta Carrera. 

Para a atriz Fabianna de Mello e Souza, o texto de "As Comadres" tem muito a dizer para as plateias de 2021. "Existe uma grande evolução na luta do movimento das mulheres por representatividade, respeito, igualdade, mas ainda há um trabalho enorme por vir, sobre todas as questões, como as relações abusivas, o trabalho doméstico, a opressão, o aborto, a religião, a maturidade. Ainda temos muito a avançar. Essas questões representam as mulheres, brasileiras ou mundiais", acredita a artista, que também é coordenadora de produção do espetáculo.

Para a atriz Sirléia Aleixo, a "aventura mágica do teatro" continua em 2021 na Cartoucherie da floresta de Vincennes, na região parisiense. "Tem sido tudo uma experiência muito feliz. Muito aprendizado, muito frio [risos]... Está sendo tudo muito gratificante, parece que é mágico. Não dá para cair a ficha da intensidade, da grandiosidade, do momento em que a gente se encontra e está aqui fazendo teatro novamente", diz. Para Ariane Hime, as plateias francesas surpreenderam. "Eu esperava um público mais distante, e mais frio", conta. "Por causa do choque cultural, nós brasileiros somos mais abraço, pele, contato... A gente ri alto, a gente fala alto... A gente esperava uma plateia mais quieta, mais comportada. E não: a plateia vem abaixo, parece que ela quer entrar dentro do palco e é muito gostoso por isso, a gente se sente muito em casa", afirma a atriz.

Sem trabalho na pandemia

"Na pandemia, ficamos sem trabalho no Brasil. Está horrível no Brasil. E, de repente, a gente pensa e faz teatro novamente, 24 horas por dia, e a gente tem um público que volta justamente com essa sede de palco, de teatro, de gente", comemora Hime.

Juliana Carneiro da Cunha, atriz veterana e integrante da trupe do Théâtre du Soleil há 31 anos, se sente realizada com o sucesso da peça no Brasil e na França. "É o sentimento de um sonho realizado no sentido em que já fazia muito tempo em que eu perguntava pra Ariane, ou que tentava junto com ela montar algum projeto no Brasil", conta. "Pedi pra ela dar uma ideia e Ariane me falou então do texto de 'Les Belles Soeurs', uma peça canadense que foi escrita em 1968, vanguardista, denunciando e mostrando o lugar da mulher no Canadá da época. Mas se trata de uma peça mundial, já foi montada em vários outros países do mundo", lembra a atriz.

"As pessoas diziam: 'você é maluca, são 15 personagens'. E eu respondia: mas, justamente, é hora de irmos em frente. Não tínhamos um tostão, todo mundo trabalhou como produtora da peça e sem receber, mas eu tinha certeza absoluta que a gente ia conseguir até a peça estrear no Festival de Curitiba, e ter um sucesso enorme no Rio e São Paulo", diz Cunha.  "A ideia era trazê-las no ano passado [para a Europa], mas com a covid não deu certo. (...) É uma peça internacional e eterna, porque os problemas continuam os mesmos. A gente vai avançando, tivemos muito progressos, coisas que as mulheres conseguiram na luta. É uma peça que conta a história de mulheres na periferia de qualquer cidade do mundo e que as representa como um ser humano", avalia.

A peça "As Comadres" fica em cartaz no Théâtre de l'Épée de Bois, que divide o espaço na Cartoucherie com o Théâtre du Soleil, de 23 a 30 de dezembro de 2021.

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