'Vênus': artista brasileira celebra tensão entre beleza e memória de corpos negros em instalação em Paris
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A artista brasileira Val Souza apresenta em Paris a exposição “Vênus”, uma instalação monumental com mais de 800 imagens que ocupa a Maison Européenne de la Photographie (MEP) entre os dias 3 e 28 de setembro. A mostra é resultado de uma pesquisa iconográfica profunda sobre a representação das mulheres negras no Brasil e no mundo - uma investigação que Souza desenvolve há anos, entre arquivos familiares, revistas, livros, redes sociais e registros etnográficos.

A proposta da artista vai muito além da estética. Em “Vênus”, que possui curadoria de Thyago Nogueira (IMS, São Paulo) e Clothilde Morette, Val Souza confronta a violência simbólica presente nas imagens históricas dos corpos negros, ao mesmo tempo em que propõe novas formas de ver e sentir essas presenças. A figura de Vênus, que dá nome à exposição, é ressignificada: não se trata da beleza idealizada da mitologia greco-romana, mas de uma beleza construída a partir "da memória, do afeto e da resistência".
Segundo Souza, o trabalho é fruto de "uma trajetória pessoal e artística que remonta à infância". Os álbuns de família criados por sua mãe foram o ponto de partida para uma reflexão sobre a importância da imagem negra. “Minha mãe repetidas vezes mostrou o quanto a nossa imagem era importante”, relembra. Esses gestos cotidianos de afeto contrastavam com a forma como a sociedade tratava sua imagem. “Desde criança eu me perguntava por que algumas pessoas não gostavam de mim, quando em casa eu era tão amada.”
A tensão entre o afeto íntimo e a hostilidade pública é um dos motores da pesquisa visual da artista. “A minha intenção não é resolver imagens, muito pelo contrário, é colocar cada vez mais tensão em algumas imagens, que possam produzir na gente outras maneiras de ver, de se perguntar e de conversar com estas imagens”, disse Val Souza à RFI.
“Vênus Hotentote”
Na exposição, figuras da cultura pop como Beyoncé e Kim Kardashian aparecem ao lado de retratos da própria artista, da escritora e ativista Sueli Carneiro, da cantora Nina Simone, de mulheres anônimas e de Saartjie Baartman — a “Vênus Hotentote”, escravizada e explorada na França no século 19. A multiplicidade de imagens revela uma Vênus essencialmente plural, que existe "tanto na dor quanto na alegria, tanto na opressão quanto na liberdade".
A artista também traz para o campo da imagem sua experiência com a performance. “Acredito que aquilo que eu faço ainda é performance, num outro lugar. As imagens que eu crio têm esse agenciamento que não é só visual. No painel da MEP, as pessoas vão ter essa sensação: você vai precisar se mexer, estar perto, estar longe, fazer associações.” Val Souza entende que esse deslocamento do corpo do artista para o corpo da obra é também uma forma de proteção. “Fui entendendo como proteger o meu próprio corpo de situações de violência.”

"Periguete"
Entre suas performances mais conhecidas, Souza menciona Periguete, uma mulher negra que circula com um carrinho de bebidas. “Ela tem esse nome, mas o nome inicial era Can You See It — você consegue ver isso?”, explica. A performance questiona a visibilidade e os estereótipos associados ao corpo da mulher negra.
Segundo a artista, o carrinho carrega bebidas típicas do local onde a ação acontece, como o vinho em Paris ou as cervejas pequenas e rápidas de beber no Brasil, que são associadas à ideia de uma mulher “fácil”. “Essa mulher também tem a ver com a independência de quem está ali bebendo, curtindo uma festa, e por isso é taxada como periguete, por causa da roupa, da atitude.”
Val Souza usa um top e um short curto, deixando partes do corpo à mostra, e oferece dança e bebida sem dizer uma palavra — apenas uma placa com “R$ 2” sinaliza a interação. “Se as pessoas conversam comigo, eu posso responder, mas não inicio nenhuma conversa.”
A artista reflete sobre como a beleza, na iconografia da mulher negra, se mistura com voyeurismo, sexualidade, exibicionismo e opressão.
Costumo dizer que o mapa colonial do Brasil também é o mapa da imagem da mulher negra. Sinônimos como gostosura, delícia, captura, selvageria são usados tanto para o território quanto para os corpos colonizados.
Val Souza vê essas camadas como inseparáveis: a selvageria atribuída ao corpo negro convive com uma beleza hipnótica. “Gosto da imagem da onça pintada. Ela pode acabar com você em segundos, mas você fica hipnotizado. É esse misto que sinto que pulsa na minha imagem e nas imagens de mulheres negras.”
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