Reportagem

Grandes atores de desinformação, como políticos, devem ser responsabilizados, defende sociólogo

Publicado em:

Só nos dois últimos meses de 2021, o Facebook e o Instagram tiraram do ar mais de 200 mil publicações que desinformavam sobre a Covid e a vacina apenas na União Europeia. A informação é do mais recente relatório europeu de luta contra a desinformação. O bloco fez uma parceria com Tik Tok, Google, Twitter, Microsoft e Facebook para reduzir a circulação de notícias falsas ou enviesadas sobre a pandemia. No entanto, este trabalho ainda é muito pequeno perto da montanha de desinformação que circula.

Com a facilidade da internet e das redes sociais, a desinformação chega diretamente em nosso celular, muitas vezes por fontes como políticos e celebridades
Com a facilidade da internet e das redes sociais, a desinformação chega diretamente em nosso celular, muitas vezes por fontes como políticos e celebridades Chris DELMAS AFP/File
Publicidade

As informações falsas e teorias da conspiração são, muitas vezes, relacionadas a pequenos grupos radicais. As pesquisas, entretanto, mostram que elas só são capazes de alcançar o grande público quando são apoiadas por grandes atores, que usam de seu reconhecimento e visibilidade para amplificar as dúvidas ou informações falsas.

"Os estudos mostram que a desinformação nasce nas franjas de baixa visibilidade da internet, pequenos blogs, ideólogos pouco conhecidos, em pequenas comunidades, particularmente da extrema direita. Mas a desinformação que eles produzem não chega ao público em geral, a não ser que haja um ator com um perfil de grande visibilidade que veicule esta desinformação", explica o sociólogo Dominique Cardon, pesquisador da Sciences Po e coordenador de uma iniciativa europeia de combate à desinformação.

No caso norte-americano, foi demonstrado que a Fox News e o ex-presidente Donald Trump, atores com grande visibilidade, de fato instrumentalizaram informações manipuladas para agirem no ambiente político e criar radicalização. "Assim, eles construíram uma agenda política em parte da população, que se dividiu e polarizou muito fortemente", explica.

O exemplo mais radical dessa polarização nos Estados Unidos é a invasão de milhares de apoiadores de Trump ao Capitólio em rejeição ao processo eleitoral que deu a presidência ao democrata Joe Biden. Mas para que tal cena fosse possível, houve por anos a criação de um ambiente de desconfiança na sociedade. Desconfiança da imprensa, da ciência, dos políticos e, ao final, do processo eleitoral.

Uma pesquisa de opinião feita neste ano, e publicada pelo jornal britânico Guardian, mostra que um grande número de norte-americanos não pensa que a eleição de Biden aconteceu dentro das regras. Segundo a pesquisa Axios-Momentive, mais que 40% dos norte-americanos acreditam que o democrata não foi eleito legitimamente.

Um ambiente de desconfiança

Este ambiente de desconfiança e as ferramentas de desinformação atingiram em cheio as estratégias de combate à pandemia da Covid-19. Mesmo em países em que a vacinação era um tema apaziguado, houve a emergência de importantes movimentos antivacina da Covid-19, provocando protestos violentos e muitas mortes.

Nesta estratégia de polarização e de quebra de confiança, nem tudo é informação falsa. As fake news estão misturadas com uma série de histórias mal contadas, tiradas de contexto ou que partem da realidade mas a extrapolam até dar a sensação de uma situação que não existe.

E isso em parte é proposital. De um lado, usar como matéria-prima partes de informações verdadeiras aumenta a chance de que a pessoa que recebe a história acredite nela, de outro, dificulta para quem pretende mostrar que aquilo não é real.

"A desinformação é um espectro a partir do qual a realidade foi manipulada. Entre aquela que é completamente falsa e toda uma série de enquadramentos enviesados, manipulados ou aumentados, informações de baixa qualidade, usadas sem contexto ou que ampliam algo que não é relevante estatisticamente. O quadro nesse caso foi distorcido de tal forma que sugere uma realidade que não existe", comenta Cardon.

A gente pode ver que uma estratégia da extrema direita é multiplicar os microeventos. Você queima uma lixeira em uma cidade aqui, depois tem outra lixeira que queima em Toulon, depois uma terceira em Cergy. E, de repente, eles dizem que há incêndios de lixeiras por todas as partes. E daí, já é a França que está em chamas. Dessa maneira você fabrica assuntos ou temas políticos que mudam o ambiente"

Dominique Cardon

O caos da informação

Mas se hoje conseguimos encontrar tanta informação de qualidade na palma da mão, dentro de nossos celulares, por que coisas falsas ganham tal importância?

Para o socióloco Gerald Bronner, da Universidade Paris-Diderot e autor do livro "Apocalipse cognitivo", parte do problema está no tempo livre aliado ao excesso de informação.

"Hoje temos uma disponibilidade mental muito maior, cerca de oito vezes maior do que tínhamos no século 19. Ao mesmo tempo, há uma quantidade de informação gigantesca e histórica que, claro, nosso cérebro não consegue absorver e processar. Imagine que produzimos nos últimos dois anos 90% de toda a informação disponível na face da Terra. Nesta massa de informação, vamos escolher de acordo com o apetite de nosso cérebro, de nossas intuições, e até de nossas obsessões", afirma o especialista.

A crença em notícias falsas é apenas uma das faces deste problema. Tentando navegar neste caos informacional, as emoções ganham papel importante na hora de escolhermos onde nos fiamos ou o que vamos parar para assistir ou ler. Dentre a gama de emoções possíveis, o medo e a raiva (ou indignação) são, de acordo com ele, sentimentos profundamente mobilizadores.

"Achávamos que como todas as ideias estariam em concorrência no mercado, que as melhores propostas, as mais bem argumentadas, as mais racionais, as mais científicas acabariam por se impor. Mas isso é o contrário do que a gente observa", conclui Bronner.

As pessoas com cartazes nas ruas de Bayonne, sul da França durante manifestação contra o passaporte sanitário. 7 de agosto de 2021.
As pessoas com cartazes nas ruas de Bayonne, sul da França durante manifestação contra o passaporte sanitário. 7 de agosto de 2021. AP - Bob Edme

Como combater a desinformação

Uma das estratégias adotadas pela União Europeia para combater a desinformação e a radicalização, são projetos que aliam a checagem de informações na mídia com a inserção do tema nas escolas, adotando um ensino midiático que prepara os leitores para as falsidades que chegam pelo Facebook, pelo Youtube ou no grupo da família.

Na França, acaba de ser lançada a iniciativa De Facto. Coordenador do observatório, Dominique Cardon conta que a checagem sistemática de informações que circulam pelas redes sociais tem efeito.

"As pesquisas mostram que as pessoas vão compartilhar menos algo que foi verificado e mostrado que era falso. Então tem um efeito, um efeito na redução da taxa de circulação de desinformação. E, por outro lado, pode ter o efeito de informar as plataformas digitais, que podem reduzir a visibilidade daquele material", analisa.

No entanto, para isso é preciso regulamentar a maneira como as grandes plataformas digitais administram a informação que elas nos mostram, salienta Gerald Bronner.

"Na internet, a editorialização da informação se faz de maneira cega pelos algoritmos que levam em conta sobretudo os interesses econômicos. Serão os estados ou as entidades internacionais que terão de impor regras quase morais que levem em conta o interesse público a essa lógica algorítmica. E assim nos tirem dessas câmaras de eco, que nos levam à polarização, à radicalização e a um ciclo de indignação perpétua", pontua.

Outro ponto importante, lembra Cardon, é a responsabilização dos grandes atores que espalham a desinformação, como políticos ou veículos de comunicação que equiparam no espaço de debate informações falsas e verdadeiras.

Os programas de televisão vão passar horas na discussão de um assunto polêmico, e para isso vão encontrar uma tese extrema e convidar alguém, às vezes com cinismo, uma pessoa que sabem que não é confiável, mas vão convidar porque isso vai dar audiência, vai chamar atenção do público"

Dominique Cardon

Para ele, é preciso uma discussão ampla e atuação na responsabilização de quem amplifica a desinformação.

Combate também se faz nos círculos privados

Cada um de nós, contudo, tem papel importante nesta luta, principalmente dentro de grupos de Whatsapp ou do círculo familiar, defende o pesquisador da Sciences Po.

"Nesses grupos mais privados, como no WhatsApp ou no Telegram, é preciso que tenha alguém no grupo que reaja, se exponha, e é preciso coragem para fazê-lo, para dizer “Não, o que você está dizendo, o que você está divulgando e tentando fazer os outros acreditarem não é verdadeiro, não é apoiado pelos fatos, mas é assim que desenvolvemos o senso crítico", finaliza.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios