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Sem campanha eficaz de vacinação, economia brasileira pode piorar em 2021

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Com um atraso de um mês em relação aos países desenvolvidos e atrás também de outros emergentes, o Brasil iniciou na semana passada a vacinação contra a Covid-19, mas os contornos do plano de imunização coletiva permanecem vagos. A consequência é que, sem uma coordenação do governo federal para distribuir o vacina pelo país, especialmente na rede pública, a economia brasileira pode registrar um recuo ainda maior do que o visto em 2020.

Francisca Alves Xavier, 102 anos, que já teve Covid, recebe uma injeção da vacina chinesa Sinovac CoronaVac durante um programa prioritário de vacinação para idosos no asilo Bezerra de Menezes em Brasília, na sexta-feira, 22 de janeiro de 2021.
Francisca Alves Xavier, 102 anos, que já teve Covid, recebe uma injeção da vacina chinesa Sinovac CoronaVac durante um programa prioritário de vacinação para idosos no asilo Bezerra de Menezes em Brasília, na sexta-feira, 22 de janeiro de 2021. AP - Eraldo Peres
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Essa é a avaliação da economista especializada em Medicina Monica de Bolle, pesquisadora-sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington.

"A economia está completamente à deriva neste momento. Não existe nenhuma estratégia de política econômica, e sim uma aposta de que as coisas possam melhorar num passe de mágica. Foi assim desde o início da pandemia, quando, em março, o ministro da Economia ainda falava em crescimento de 2,5 ou 3%% em 2020”, afirma. "Assim como, naquela altura, havia uma completa desconexão com a realidade, o mesmo acontece hoje – porém a situação agora é mais grave do que era em março de 2020."

Economista Mônica de Bolle, pesquisadora-sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, em entrevista à RFI.
Economista Mônica de Bolle, pesquisadora-sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, em entrevista à RFI. © Captura de tela

A circulação de novas variantes do coronavírus acrescentam ainda mais urgência para a aceleração da campanha de vacinação. Os imunizantes disponíveis podem não apresentar a mesma eficácia contra a linhagem identificada recentemente em Manaus, além das encontradas em países como Reino Unido e África do Sul.

Cortes no SUS em momento em que calamidade aumenta

Entretanto, em um contexto em que a calamidade pública se acentua, a previsão de orçamento do Sistema  Único de Saúde (SUS) é menor do que no ano passado – o que traz preocupação quanto à abrangência e eficácia da campanha recém iniciada. Monica ressalta que, assim como economia e pandemia estão intrinsecamente ligadas desde o princípio, o mesmo vale para esta nova etapa de imunização coletiva.

"Se o Brasil quiser, em algum momento, que nem conseguimos vislumbrar ainda, começar a ter uma recuperação econômica mais consistente, precisa investir desde agora na campanha de vacinação. O governo deve fazer uma estratégia de imunização que funcione, apoiar as agências do SUS que serão responsáveis por isso, reforçar os recursos do SUS, para que a campanha possa ser feita”, ressalta a economista. "Mas o que estamos vendo é que orçamento para a área de saúde é R$ 35 bilhões menor do que em 2020. É inacreditável."

Índio guarani é vacinado com a CoronaVac no acampamento da tribo São Mata Verde Bonita, na cidade de Marica, estado do Rio de Janeiro.
Índio guarani é vacinado com a CoronaVac no acampamento da tribo São Mata Verde Bonita, na cidade de Marica, estado do Rio de Janeiro. Agence France-Presse

Essa situação acontece porque o decreto de calamidade pública, que permitia a liberação de recursos emergenciais, expirou em dezembro e, até o momento, não foi renovado. O fim do decreto impacta também na continuidade do auxílio emergencial para milhões de brasileiros que, sem a ajuda financeira, poderão se encontrar sem renda. A pesquisadora destaca que a economia brasileira "só não afundou mais” por causa do auxílio, que sustentou o consumo e atenuou a queda brutal da arrecadação desde o início da pandemia.

Quanto à vacinação, a economista lembra que o Brasil está atrasado não só em relação às nações desenvolvidas, como na comparação com outros países emergentes, a começar pela vizinha Argentina, que iniciou o processo há um mês. Economias menos relevantes, como Turquia e Indonésia, também iniciaram a o uso emergencial das doses mais cedo que o Brasil, graças a acordos com o laboratório chinês SinoVac.

A demora se deveu ao envolvimento da política em uma questão de saúde pública, frisa Monica de Bolle. Depois de rejeitar a vacina chinesa, ao mesmo tempo em que reiterava críticas ao país asiático, o governo brasileiro foi obrigado a voltar atrás, diante do risco de o país ficar sem vacina.

Terezinha da Conceição, 80, esquerda, e Dulcinéia da Silva Lopes, 59, tornam-se as primeiras mulheres a receber a vacina da Sinovac Biotech Ltd no Brasil, no início do programa de vacinação, em frente ao Cristo Redentor ,no Rio de Janeiro. (18 de janeiro de 2021)
Terezinha da Conceição, 80, esquerda, e Dulcinéia da Silva Lopes, 59, tornam-se as primeiras mulheres a receber a vacina da Sinovac Biotech Ltd no Brasil, no início do programa de vacinação, em frente ao Cristo Redentor ,no Rio de Janeiro. (18 de janeiro de 2021) AP - Bruna Prado

Falha na vacinação é sintoma de isolamento internacional

No cenário internacional, a saída de Donald Trump da presidência dos Estados Unidos força o Brasil a se reposicionar diante dos seus antigos parceiros – dos quais o país acabou se distanciando desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder.

"Havia uma percepção, inclusive do chanceler Ernesto Araújo, de que bastava ser aliado dos Estados Unidos para que tudo estivesse resolvido, como se o resto não importasse muito", aponta a economista.

Na questão ambiental, que foi um campo de batalha com os governos europeus e, em particular, com a França, o Brasil se colocou em uma postura combativa, até bélica. Essas pontes terão de ser reconstruídas”, observa a professora da Universidade John Hopkins.

O mesmo vale para os próprios Estados Unidos. Instalada na capital americana, Monica de Bolle afirma estar "bastante preocupada" com o futuro das relações entre os dois países.

"O Biden teria tudo para ter uma agenda mais voltada para a América Latina, porque ele é um conhecedor da região e do Brasil. Mas algumas coisas vão atrapalhar. A primeira é que há uma agenda doméstica nos Estados Unidos imensa”, sublinha. "E o Brasil não tem facilitado em nada uma aproximação entre os dois governos – e onde isso é mais óbvio é na pauta de meio ambiente, que é central para o governo Biden. Porém, sendo Biden uma pessoa de perfil conciliador, ainda tem espaço para essa situação se rearranjar”, pondera.

Os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China.

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