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Sete em cada dez italianos acreditam que migrantes africanos sofrem racismo no país

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As Olimpíadas de Paris 2024 reanimaram debates na Itália sobre o direito de cidadania italiana e racismo. Um mural, que continha uma homenagem à Paola Egonu, considerada a melhor jogadora italiana da seleção feminina de vôlei, foi vandalizado. A atleta campeã olímpica, nascida em Cittadella, cidade próxima a Veneza, tem origem nigeriana por parte dos pais.

Vista de um mural em homenagem à jogadora de vôlei italiana Paola Egonu, em uma parede, em frente à sede do CONI na Viale Tiziano, em Roma, segunda-feira, 12 de agosto de 2024.
Vista de um mural em homenagem à jogadora de vôlei italiana Paola Egonu, em uma parede, em frente à sede do CONI na Viale Tiziano, em Roma, segunda-feira, 12 de agosto de 2024. AP - Mauro Scrobogna
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Gina Marques, correspondente RFI na Itália

O primeiro ouro da seleção italiana no vôlei feminino veio com as mãos de Paola Egonu, a maior pontuadora da final contra os Estados Unidos. A jogadora italiana marcou 22 pontos determinantes para a conquista do título. Ela nasceu em Cittadella, na região do Vêneto, no norte da Itália, tem 25 anos e seus pais são imigrantes vindos da Nigéria.

Mas a satisfação pela vitória não foi suficiente para aplacar as controvérsias, não sobre o mérito das atletas, mas sobre a cor da pele de algumas jogadoras. Além de Egonu, a seleção feminina de vôlei conta com Myriam Sylla e Loveth Omoruyi, mulheres que nasceram na Itália, cujos pais têm origens africanas.

O ex-general Roberto Vannacci, eleito eurodeputado com o partido de extrema-direita Liga para Salvini Premiê, acendeu o pavio da polêmica. Ele é famoso na Itália pelo seu livro intitulado “Il mondo al contrario” (O mundo ao contrário), no qual ataca homossexuais, feministas, imigrantes e nega as mudanças climáticas. O livro já vendeu 250 mil cópias.

Sobre a vitória feminina no vôlei, Vannacci declarou: “Nunca duvidei que Paola Egonu fosse uma atleta italiana muito boa. Continuo a afirmar que os seus traços somáticos não representam a maioria dos italianos”. Dias depois, nas redes sociais, ele reiterou que “os italianos são brancos, aqueles com traços somáticos centro-africanos não os representam”.

Paola sentada no chão na frente da bandeira italiana com suas colegas da seleção da Itália em comemoração, após vencerem a medalha de ouro do vôlei feminino contra os EUA, em Paris 2024, no último dia 11 de agosto.
Paola sentada no chão na frente da bandeira italiana com suas colegas da seleção da Itália em comemoração, após vencerem a medalha de ouro do vôlei feminino contra os EUA, em Paris 2024, no último dia 11 de agosto. © AFP - PATRICIA DE MELO MOREIRA

Logo após as declarações de Vannacci, na madrugada da segunda-feira (12) a artista Laika pintou um mural em homenagem a Paola Egonu. A obra, realizada em frente à sede do Comitê Olímpico Nacional Italiano (Coni), se chama “Italianità” e mostra a atleta golpeando uma bola onde aparece escrito “pare com o racismo, ódio, xenofobia e ignorância”.

No entanto, um dia depois a imagem foi vandalizada. A frase foi cancelada, e a cor da pele de Egonu foi alterada para rosa. Em seguida, uma jovem pintou novamente com uma caneta a cor da pele da atleta de preto. Até que no último dia 15 de agosto, a imagem foi deturpada de novo.

Ofensas racistas

Antes da glória com o ouro em Paris, Egonu já tinha enfrentado insultos racistas de torcedores italianos. Quando tinha 16 anos e jogava com o Treviso, viu a torcida rival imitar o som de macacos a cada vez que tocava na bola. Naquele dia, Paola chorou, sem reagir.

A jogadora também foi vítima de ofensas racistas em um programa esportivo da televisão italiana. O episódio aconteceu em 23 de setembro 2022. Cristiana Buonamano, apresentadora da Sky Sports, comentava sobre a seleção italiana ao lado de um convidado, quando chamou Egonu de "macaca".

“Você falou de dois macacos, mas sabe que eu acrescentaria outra: Egonu. Busque, você, um adjetivo diferente ou original. Não sei ser original”, associou de forma racista a apresentadora.

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Racismo na Itália

Sete em cada dez italianos acreditam que, na Itália, os africanos estão sujeitos a episódios de racismo e discriminação com muita frequência (22%) ou com bastante frequência (48%). É o que informou a pesquisa intitulada “África e saúde: a opinião dos italianos” feita pelo instituto Ipsos para a organização Amref Italia. A pesquisa foi realizada em outubro de 2023 em uma amostra representativa de 800 pessoas.

Segundo a pesquisa, apenas um em cada dez italianos (11%) tem a percepção correta de quantos africanos vivem hoje no país. A Itália tem uma população de quase 60 milhões de pessoas, e cerca de 1,2 milhão são de origem africana.

O estudo é detalhado e ressalta que 53% dos italianos consideram os africanos pouco ou nada integrados no país. No capítulo “África na Itália” além do racismo, outras questões são abordadas, como os obstáculos à integração e a lei da cidadania.

Lei da cidadania na Itália

A cidadania italiana é reconhecida principalmente por Jus Sanguinis, que significa direito sanguíneo, ou seja, a pessoa tem que ser descendente de, pelo menos, um italiano, mesmo que tenha nascido no exterior. A cidadania também pode ser obtida casando-se com um cidadão ou cidadã italiana.

Para quem não tem origem italiana remota nem mulher ou marido italiano, o processo torna-se complicado e caro. A Itália é um dos países com requisitos mais rigorosos para a concessão de cidadania aos imigrantes. Para aqueles que vêm de países fora da União Europeia, são exigidos pelo menos dez anos de residência em território italiano, vinculados a um contrato de trabalho legal e contínuo.

No caso de menores, mesmo nascidos em solo italiano, o processo pode ser ainda mais demorado. Na verdade, eles só podem solicitar a cidadania depois de completarem 18 anos e terem residido legal e continuamente na Itália. Além disso, o pedido de cidadania tem que ser feito até 12 meses após atingir a maioridade.

Portanto, a lei exclui dezenas de milhares de menores dos direitos associados à cidadania italiana, apesar de viverem e crescerem no país. Também os vincula à condição dos pais, cuja autorização de residência pode expirar e, portanto, obrigar toda a família a abandonar o país, comprometendo a continuidade da residência necessária à obtenção da cidadania.

Existem algumas exceções a esta regra. Por exemplo, os atletas que obtêm resultados excepcionais nas respectivas modalidades esportivas podem acessar a um procedimento acelerado de cidadania, graças ao mérito esportivo.

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Propostas para mudar a lei 

Alguns partidos progressistas de oposição, como Partido Democrata, +Europa, Aliança Verde e de Esquerda, propõe que seja reconhecida a cidadania italiana a todos os indivíduos nascidos na Itália, independentemente da nacionalidade dos pais. É a chamada 'Jus soli', que significa direito de solo, ou seja, um princípio pelo qual uma nacionalidade pode ser atribuída a um indivíduo de acordo com seu lugar de nascimento.

Segundo um estudo da fundação Leone Moressa, feito para o jornal La Repubblica, com o 'Jus soli' seriam beneficiados 1,2 milhão de menores estrangeiros nascidos de 2006 até hoje na Itália, mais 50 mil novos nascimentos por ano.

Os dois principais partidos de extrema-direita do governo, Irmãos da Itália e Liga, são contrários a mudar a lei. Mas o governo está dividido, porque o partido aliado Força Itália apoia outra proposta, a chamada 'Jus Scholae', que também é defendida pelo Movimento Cinco Estrelas, partido de oposição.

A proposta 'Jus Scholae' é que a cidadania italiana seria reconhecida ao menor estrangeiro nascido na Itália, ou que tenha chegado antes de completar 12 anos, e que tenha concluído um ciclo escolar de pelo menos cinco anos. De acordo com a fundação Moressa, a lei interessaria 135 mil estudantes hoje considerados estrangeiros, além de 6 mil a 7 mil novos beneficiários por ano.

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