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Sarkozy condenado: devemos moralizar a política?

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O ex-presidente Nicolas Sarkozy se envolveu num enredo rocambolesco: corrupção, dinheiro sujo vindo da Líbia e até uma guerra vista como queima de arquivo. Sua condenação é justa. O risco é que casos assim alimentem o descrédito da política e o moralismo.

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O ex-presidente francês Nicolas Sarkozy fala com jornalistas após o veredicto em seu julgamento com outros réus por acusações de corrupção e financiamento ilegal de uma campanha eleitoral relacionada ao suposto financiamento líbio de sua campanha presidencial em 2007, no tribunal em Paris, França, em 25 de setembro de 2025.
O ex-presidente francês Nicolas Sarkozy fala com jornalistas após o veredicto em seu julgamento com outros réus por acusações de corrupção e financiamento ilegal de uma campanha eleitoral relacionada ao suposto financiamento líbio de sua campanha presidencial em 2007, no tribunal em Paris, França, em 25 de setembro de 2025. REUTERS - Stephanie Lecocq
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Thomás Zicman de Barros, analista político

Nicolas Sarkozy foi condenado — e por organização criminosa. Não é o primeiro ex-presidente francês a ser sentenciado, mas é o primeiro a receber pena de prisão efetiva: cinco anos, parte deles em regime fechado. Ele se diz perseguido e pode apelar, mas a Justiça decidiu que, como reincidente, deve começar a cumprir a pena já. O caso, com elementos extraordinários, nos faz pensar para além da França, sobre o papel da moral e do moralismo na política.

Mas comecemos pela condenação de Sarkozy. O caso é rocambolesco, quase inacreditável. Se um roteirista apresentasse esse script a um produtor, seria rejeitado por falta de verossimilhança. Sarkozy, então ministro do Interior em 2005 e 2006 — um ministro que se dizia implacável contra o crime, defensor de penas pesadas e crítico do “laxismo” judicial — preparava sua candidatura presidencial. Para financiá-la, enviou seu chefe de gabinete e amigo próximo, Claude Guéant, a captar fundos irregulares. O que no Brasil chamaríamos de “caixa dois”. Até aí, infelizmente, nada fora do comum.

A narrativa muda de tom quando vemos onde o colaborador de Sarkozy foi buscar o dinheiro: em Trípoli, capital da Líbia, e não com qualquer figura. Ele procurou Abdallah Senoussi, genro e braço direito do “Guia da Revolução”: Muammar Kadafi. Não era apenas um genro qualquer. Senoussi era chefe dos serviços secretos militares e um dos responsáveis pelo atentado ao voo UTA 772, que ligava Brazzaville, na República do Congo, a Paris, com escala em N’Djamena, no Chade. Em dezembro de 1989, o avião explodiu em pleno ar, matando 170 pessoas — entre elas, 54 franceses.

Recapitulando: o futuro presidente da França mandou buscar recursos para sua campanha junto a um regime excêntrico, marcado por ligações com terrorismo. Em troca, Sarkozy teria prometido favorecer a reabilitação da Líbia no concerto das nações.

Catorze anos de apurações

Catorze anos de apurações comprovaram que valores foram transferidos em malas, intermediadas pelo empresário franco-libanês Ziad Takieddine. O montante exato é incerto: Takieddine fala em cerca de € 5 milhões, e documentos líbios mencionam até € 50 milhões. Seja como for, foi um mau investimento para o coronel Kadhafi. Ainda não sabemos quando a relação azedou, mas é certo que Sarkozy esteve entre os líderes que, em 2011, conduziram os bombardeios da OTAN contra a Líbia durante a chamada “Primavera Árabe”, ajudando a derrubar o regime e matar o chefe beduíno.

Não cabe aqui reconstituir cada detalhe do processo. Estas crônicas não buscam apenas narrar fatos, mas também propor análise. E a primeira chave para essa análise está na reação pública: para muitos cidadãos, a condenação de um ex-presidente reforça o descrédito da política. Myriam Revault-d’Allonnes — minha orientadora à época do mestrado — discutiu esse risco com grande lucidez em um livro que já traz no título a pergunta-chave: Devemos moralizar a política? (Doit-on moraliser la politique?, publicado pelas edições Bayard, 2002).

Revault-d’Allonnes defende que a corrupção deve ser combatida por uma Justiça independente, mas alerta para os riscos de transformar a política em uma cruzada moral — o que, paradoxalmente, acabaria por corroê-la.

O moralismo anticorrupção abre espaço para o que ela chama de “despotismo moral”, que destrói não a corrupção, mas a própria política enquanto espaço legítimo de disputa entre desejos.

Pânico moral

Não por acaso, a extrema direita sempre soube transformar o moralismo em pânico moral: um dispositivo que pinta os adversários como ladrões, parasitas ou obscenos e promete a ilusão de uma sociedade purificada pela virtude. No fundo, é disso que se trata quando alguns falam de “polarização”.

Longe de ser simples disputa entre polos legítimos, ela é fruto da radicalização da extrema direita, que nega a pluralidade e transforma o adversário em inimigo infrequentável. O debate público deixa então de ser confronto entre perspectivas diferentes e passa a opor, de um lado, quem busca calar as demais vozes e, de outro, quem ainda luta por preservar uma sociedade aberta, plural e inclusiva.

No Brasil, a pauta da moralidade sempre teve peso e volta agora ao centro do debate. O cenário, no entanto, mudou: fragilizada por processos judiciais e alianças com redes corruptas, a extrema direita perdeu fôlego em seu próprio terreno, e o discurso anticorrupção passou a ser impulsionado também pela esquerda. Isso pode ser útil não apenas para expor privilégios e esquemas ilícitos, mas também para enfrentar a extrema direita em sua ofensiva contra a democracia.

O risco, porém, é reproduzir a gramática da pureza. O desafio é construir antagonismos claros contra os corruptos e contra a extrema direita — inclusive recorrendo a estratégias “populistas” em seu sentido original, de mobilização do povo contra aqueles que o calam — mas sem reduzir a política ao moralismo.

No fim, a trajetória de Sarkozy — marcada pelo surreal caso de corrupção e pelo descrédito da política que reforçou — é também um lembrete: quando a política se deixa capturar pelo moralismo, não é a corrupção que desaparece. É a própria democracia.

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