Quatro dias bastaram para que o primeiro-ministro da França caísse — e voltasse, como se nada tivesse acontecido. A crise se arrasta, entre alianças movidas pelo medo e um presidente que repete a mesma estratégia, à espera de um resultado diferente.
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Thomás Zicman de Barros, analista político
No domingo, 5 de outubro, após 26 dias de negociações, o primeiro-ministro Sébastien Lecornu anunciou seu governo. Havia dúvida se a oposição — sobretudo o Partido Socialista — tentaria censurá-lo, mas nem foi preciso. Em apenas doze horas, o gabinete implodiu. O golpe veio de dentro: aliados do próprio campo presidencial se rebelaram, a começar pelo líder da direita tradicional e ministro do Interior Bruno Retailleau — um aspirante à sucessão de Macron que parece ter reinventado a lógica política. Se já se conhecia o “apoio sem participação” no governo, Retailleau inaugurava a “participação sem apoio”.
Na manhã seguinte, diante da desintegração da base e da impossibilidade de aprovar o orçamento, Lecornu apresentou sua demissão. Era o quarto chefe de governo a cair em menos de dois anos. Seu antecessor, François Bayrou, havia durado dez meses antes de perder um voto de confiança. Michel Barnier, o anterior, caíra por uma moção de censura.
A origem dessa instabilidade é conhecida. Após sua reeleição em 2022, Emmanuel Macron conseguiu apenas uma maioria relativa no Parlamento. Em 2024, buscando recuperar o controle, decidiu dissolver a Assembleia Nacional de surpresa. Mas o tiro saiu pela culatra: o presidente voltou das urnas com ainda menos deputados. Desde então, cada governo nasce minoritário, dependente de alianças contraditórias e fadado à implosão.
A crise, que começou como um impasse parlamentar, tornou-se uma espécie de paralisia estrutural. Com a saída de Lecornu, reacendeu-se a hipótese de uma nova dissolução — e, junto dela, o coro pela renúncia do próprio Macron. Segundo as pesquisas, 73% dos franceses querem que ele deixe o cargo. Até Édouard Philippe, ex-primeiro-ministro — e outro provável candidato a sucedê-lo — declarou que a solução poderia ser uma eleição presidencial antecipada.
O medo como método
Na segunda-feira, Macron foi visto caminhando sozinho pela beira do Sena. Àquela altura, o presidente parecia encenar sua própria solidão política. Pediu a Lecornu 48 horas para “consultar as forças políticas” e trazer opções.
Na noite de quarta, o premiê demissionário deu uma entrevista melancólica: disse sair frustrado, mas satisfeito por ter “feito o possível”. E deixou escapar o diagnóstico mais preciso da semana: não há maioria para governar, mas há maioria absoluta contra uma nova dissolução.
É esse medo que sustenta o sistema. Nenhum partido — exceto a extrema direita, favorita nas pesquisas — quer voltar às urnas. Os macronistas temem ser varridos. A esquerda, dividida e em crise, também teme perder terreno. Quando o espectro da dissolução voltou a pairar, Jean-Luc Mélenchon propôs uma reunião de toda a esquerda. Os socialistas recusaram. Assim, a Nova Frente Popular foi finalmente enterrada, em meio a acusações mútuas de traição e irresponsabilidade. A esquerda francesa, que havia se unido em torno da esperança de uma alternativa, agora se esfarela diante do ressentimento.
Na sexta-feira à noite, o país recebeu embasbacado a notícia de que Macron havia renomeado Lecornu. O mesmo primeiro-ministro que havia renunciado quatro dias antes voltou ao cargo, como se nada tivesse acontecido. A política francesa entrou oficialmente em modo “Dia da Marmota”, como no filme com Bill Murray: as mesmas cenas, as mesmas falas, os mesmos personagens, revividos até a exaustão. O presidente tenta repetir a fórmula — um governo de “união” sustentado pelo medo da dissolução — esperando resultados diferentes. É improvável que dê certo.
A nova versão do gabinete já nasce sob ameaça: 269 deputados se declararam prontos a votar uma moção de censura, e faltam apenas 21 para que Lecornu caia — de novo. Um simples gesto, à direita ou à esquerda, bastaria para ejetá-lo do cargo pela segunda vez. Após uma reunião marcada por ofensas, Retailleau e seus aliados decidiram não integrar o governo, mas tampouco censurá-lo. Já os socialistas, fiéis à sua reputação, parecem sempre prontos a sentar-se à mesa com os macronistas em busca de concessões que jamais vêm. A última delas — a ideia de suspender temporariamente a reforma da previdência — não convenceu ninguém: irritou os aliados, dividiu o governo e reacendeu o fogo sob a cadeira do primeiro-ministro.
Um impasse que se repete
Lecornu governa sobre escombros, tentando erguer uma “coalizão negativa”, unida apenas pelo medo de novas eleições. Mas o país parece exaurido. De forma cada vez mais acelerada, novos gabinetes nascem e morrem um após o outro, em um ritual de desgaste que já não surpreende ninguém.
“É preciso que tudo mude para que tudo continue como está”, dizia O Leopardo, de Giuseppe Lampedusa. Na França de Macron, a fórmula parece ter se invertido: nada muda para que nada mude. O presidente sobrevive por inércia, à frente de um sistema que já não governa — apenas se prolonga. E a pergunta que paira sobre Paris é se essa paralisia poderá resistir aos dezoito meses que faltam para o fim do mandato — ou se, antes disso, será o próprio Macron a cair.
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