Vitória de Milei nas urnas revela uma crise de dois populismos
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As eleições legislativas argentinas revelaram uma crise compartilhada. Javier Milei venceu nas urnas, mas perdeu o ímpeto populista que o tornara símbolo dos descontentes. O peronismo, por sua vez, resistiu sem recuperar o fôlego. O país parece cansado, dividido entre dois projetos em crise.

Thomás Zicman de Barros, analista político
O clima no comitê de Javier Milei era de celebração. Com cerca de 40% dos votos, o presidente argentino saiu das eleições legislativas parciais deste domingo consolidado como a principal força política do país, à frente de um peronismo que se reduz a 31% do eleitorado. Mas, por trás da vitória, o que se vê é um país cansado, marcado por uma abstenção recorde e um clima de desânimo generalizado.
As eleições, que renovavam um terço da Câmara e do Senado, registraram uma taxa de comparecimento de apenas 68%, a mais baixa desde 1942. O dado é eloquente: a Argentina parece exausta. O mileísmo sobreviveu e se expandiu no Parlamento, obtendo uma bancada suficiente para proteger seus decretos e resistir a tentativas de destituição, mas num ambiente de retração da participação. Os 40% de hoje garantem poder, mas estão longe dos 55% que o consagraram em 2023, num cenário de maior mobilização popular. O entusiasmo libertário de então deu lugar à simples rejeição ao peronismo.
Naquele ano, Milei não venceu apenas como candidato das elites tradicionais, hostis à herança de Perón. Venceu como figura de transgressão, um outsider que falava a linguagem dos desencantados. Conseguiu atrair parte dos trabalhadores precários, dos jovens sem perspectivas e de uma população exausta do Estado e descrente dos partidos. Seu estilo anárquico, feito de improviso e fúria, parecia disputar com o peronismo o monopólio de representar “os de baixo” contra “a casta”. Era um populismo de extrema direita, o primeiro capaz de desafiar o tradicional populismo peronista em seu próprio terreno.
Reorganização do voto antiperonista
O que se viu neste domingo foi outra coisa. Milei demonstrou fôlego, venceu em províncias importantes como Santa Fé, Córdoba, Mendoza e na Cidade de Buenos Aires. Sobretudo, empatou na província de Buenos Aires, a mais populosa do país, onde vive cerca de 40% do eleitorado, revertendo a vantagem de dois dígitos que o peronismo havia conquistado há apenas um mês. O que explica esse desempenho, porém, não é o fervor de 2023, mas a reorganização do voto antiperonista.
Ao longo do mandato, Milei alienou parte da base popular que o levara ao poder. Assumiu prometendo ajustes dolorosos em nome de uma futura prosperidade, mas o que se viu foi recessão, inflação ainda persistente e cortes sociais que corroeram o pouco apoio entre os setores populares. A isso se somaram dois escândalos que abalaram sua imagem moralista: o caso da criptomoeda promovida pelo próprio presidente, cujo valor disparou após suas declarações antes de o dinheiro sumir, e o das propinas de 3% em programas sociais que teriam beneficiado sua irmã e chefe de gabinete, Karina Milei.
Os setores populares em que Milei se enfraquece o deixaram restrito à base que antes orbitava o PRO de Mauricio Macri e aos grupos mais à direita da União Cívica Radical, partidos que encolheram no Parlamento e hoje veem seu eleitorado migrar para La Libertad Avanza. O medo substituiu o entusiasmo. Parte dos argentinos votou nele não por convicção, mas por rejeição ao retorno do peronismo, visto como sinônimo de estagnação e crise.
Mas se o populismo de extrema direita perdeu vitalidade, o peronismo está ainda mais combalido, incapaz de capitalizar o desgaste do governo. A abstenção o atingiu em cheio. Apesar de conseguir preservar sua bancada na Câmara, o movimento que por décadas encarnou o populismo argentino perdeu força no Senado e vive talvez sua crise mais profunda.
O fracasso do governo Fernández, a prisão domiciliar de Cristina Kirchner e as divisões internas esvaziam seu apelo popular. No mês passado, Axel Kicillof, governador da província de Buenos Aires, comemorava uma vitória arrasadora nas eleições provinciais. Agora, vê-se diante de um empate que mina seu impulso e reabre espaço para Cristina, cuja liderança é, ao mesmo tempo, carismática e profundamente rejeitada.
Crise dupla
O resultado deste domingo mostra que Milei ainda é o nome forte da política argentina, mas que sua capacidade de mobilização está debilitada. Seu diferencial era dar voz aos descontentes, aos precarizados e aos que se sentiam deixados para trás. Essa parte do eleitorado, hoje, parece ter preferido ficar em casa.
A Argentina vive, assim, uma crise dupla: a do populismo de extrema direita, que perdeu o fôlego transgressor, e a do populismo peronista, que perdeu a capacidade de encantar os de baixo. Milei governa um país cansado, e o peronismo o enfrenta sem vigor. Nenhum dos dois parece capaz, por ora, de devolver sentido à política.
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