A Quinta República foi desenhada por De Gaulle para ser estável, mas o esgarçamento das prerrogativas presidenciais por Macron ajudou a pôr o país num ciclo contínuo de crise.
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Thomás Zicman de Barros, analista político
Em meio à convulsão social e à crise política que têm marcado a França, vale tomar recuo. É fácil perder o foco nas intrigas palacianas, nas disputas no Parlamento, nos cálculos eleitorais e no jogo de culpas sobre quem acendeu o estopim de confrontos entre polícia e manifestantes. Quando afastamos a câmera, no entanto, a imagem fica nítida: Emmanuel Macron tem grande responsabilidade na instabilidade de um regime desenhado para ser estável.
Como adiantei há duas semanas, na segunda-feira, 8 de setembro, a Assembleia Nacional derrubou o então primeiro-ministro François Bayrou: a confiança no governo foi rejeitada por 364 votos a 194. No dia seguinte, sem surpreender ninguém, Macron nomeou Sébastien Lecornu — um de seus aliados mais próximos — para o cargo. Ainda assim, a cena é espantosa: Lecornu é o quinto primeiro-ministro desde a reeleição de Macron, em 2022. Sim, o quinto — depois de Élisabeth Borne, Gabriel Attal, Michel Barnier e o próprio Bayrou. E os quatro últimos se revezaram só no último ano.
Por que isso chama a atenção? Porque a Quinta República foi desenhada por Charles de Gaulle para estabilizar a política francesa, marcada, no pós-guerra, por crises sucessivas. O arranjo institucional levou ao limite o poder presidencial. Antes de chegar ao Palácio do Élysée, François Mitterrand descreveu esse desenho como um “golpe de Estado permanente”, por permitir que presidentes carismáticos tutelassem o Parlamento e contornassem o Legislativo por meio de referendos.
Em 2000, a redução do mandato presidencial para cinco anos e a sincronização do calendário com as legislativas reforçaram ainda mais a estabilidade, praticamente eliminando a coabitação — quando o presidente perde a maioria e precisa nomear um primeiro-ministro da oposição. À luz disso, a crise quase permanente dos últimos anos salta aos olhos.
É verdade que a turbulência é global. Mas Macron tem contribuído para agravá-la. Desde 2017, ele usa mal a poderosa caixa de ferramentas do presidencialismo francês — a ponto de desgastá-la. Seus predecessores, mesmo fortes, procuravam exercer prerrogativas dialogando com as forças sociais e políticas, os chamados “corpos intermediários”. Macron, jovem, ousado e estreante que por um capricho da história chegou ao topo, escolheu a via oposta. Chegou a descrever os franceses como “gauleses refratários à mudança”, dependentes do Estado, e defendia transformar o país numa “start-up nation” de cima para baixo — o que implicava pouco ou nenhum diálogo com sindicatos, prefeitos e partidos.
Esse voluntarismo sem lastro levou à crise dos Gilets jaunes (Coletes amarelos), que incendiou o país entre o fim de 2018 e o início de 2019. Em 2022, veio a façanha: garantir a própria reeleição e, ao mesmo tempo, perder a maioria parlamentar — algo que poucos julgavam possível. Em 2024, ao tentar reverter o quadro com uma dissolução surpresa da Assembleia, reduziu ainda mais a bancada presidencial e agravou a crise de legitimidade. Ao longo de todo esse período, Macron — que em 2019 chegou a evocar De Gaulle para sustentar que um presidente sem apoio popular deveria renunciar, como o próprio fez em 1969 após perder um referendo — recusou-se a mudar de rumo. Preferiu explorar uma Assembleia fragmentada para fazer avançar políticas sem apoio majoritário.
O resultado está à vista: em vez de “virar a página” da extrema direita, como havia prometido, os anos de Macron no poder assistiram à normalização e ao fortalecimento desse campo. Enquanto isso, a insatisfação que não encontra saída no Parlamento transborda novamente para as ruas. Lecornu tomou posse em 9 de setembro, na véspera do primeiro ato do movimento “Bloquons tout” (“Vamos bloquear tudo”). E, nesta quinta, 18 de setembro, está previsto o segundo momento da mobilização social, com as principais centrais convocando uma greve nacional.
Em resumo: Macron conseguiu pôr uma República desenhada para a estabilidade no centro de um redemoinho. E não importa quantos primeiros-ministros se sucedam: a crise não se resolverá sem conversa, compromisso, concessões — e uma mudança de rumo capaz de reconstruir maiorias populares.
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