Deficientes dão o primeiro golpe no ajuste fiscal de Milei; famílias se emocionam diante do Congresso
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Pela primeira vez, a Câmara de Deputados conseguiu reunir dois terços dos votos para derrubar um veto do presidente Javier Milei. O revés legislativo contou com um amplo apoio da sociedade argentina, incluindo eleitores de Milei, contra o veto presidencial que abandona deficientes em nome do superávit fiscal. Agora, o veto precisa passar pelo Senado, onde a oposição é maioria.

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires
Maricel Cardozo, de 59 anos, explicava à RFI que “estava bastante cética” quanto às chances de a Câmara de Deputados derrubar o veto de Milei à lei de Emergência em Deficiência, quando, de repente, os gritos de “aprovaram, aprovaram” fizeram milhares de deficientes, familiares e ativistas de direitos humanos explodirem em cantos e prantos diante do Congresso argentino.
“Agora temos uma luz de esperança. Nem tudo está perdido. Podemos continuar a acreditar na Democracia. Isto é um alívio para tantos setores vulneráveis da nossa sociedade”, desabafa Maricel, com a voz embargada, entrecortada pelas lágrimas.
Ao seu lado, a irmã deficiente segurava um cartaz sobre a indiferença do mundo, a verdadeira surdez e mudez. Ao fundo, ecoaram pela praça do Congresso os gritos de “Argentina, Argentina”, como se tivesse ocorrido uma vitória em um campeonato.
Com 172 votos contra o veto, 73 a favor e duas abstenções, o veto de Milei foi parcialmente derrubado na quarta-feira (20), graças, inclusive, a quatro dissidentes que racharam a bancada governista. O texto segue para o Senado, onde a oposição é maioria. Foi a primeira vez que a Câmara de Deputados derrubou um veto de Milei. Acredita-se que será a primeira vez que o Parlamento argentino derrubará um veto em toda a sua história.
Ajuste nos vulneráveis
Maricel é esposa, mãe e irmã de deficientes. A irmã, de 47 anos, totalmente dependente, tem síndrome de Down. A filha, de 37 anos, sofre de esquizofrenia. O marido, de 61 anos, teve um AVC há nove anos que o deixou com sequelas graves, dependente de cadeira de rodas, sem a fala e sem boa parte dos movimentos.
“O governo não tem autorizado novos medicamentos e tratamentos. Os centros de terapia, subfinanciados, não têm conseguido suportar os gastos. Não reajustam os valores desde dezembro de 2023. Se esta lei não passar, não sei se terei os medicamentos para eles no mês que vem”, teme.
Para completar o quadro desesperador, em janeiro passado, a “serra elétrica” de Milei passou pelo Ministério da Segurança Pública, cortando os 16 anos de emprego de Maricel, arrimo de uma família com três deficientes.
“A administração deste governo me atingiu por todos os lados, da saúde ao trabalho. O grau de ignorância dos que administram o Estado é assustador. Estão desmantelando tudo. Deste governo, não espero nada. Não há sensibilidade social. Não há critério humano. Apelo para a boa vontade das pessoas para compreenderem que não existe um país sério se o déficit fiscal zero for à custa das pessoas”, pondera.
O presidente Javier Milei, que se vangloria de aplicar “o maior ajuste fiscal da história”, equivalente a 5% do Produto Interno Bruto desde o primeiro mês de governo, tinha vetado a lei de Emergência em Deficiência, aprovada pelo Congresso em 10 de julho. A aprovação foi a resposta dos legisladores ao governo que passa a sua “serra elétrica” de ajuste inclusive pelos setores vulneráveis da sociedade, como aposentados, hospitais infantis, universitários, professores e – para espanto da maioria – deficientes.

Embora a lei represente um gasto público entre 0,28% e 0,51% do PIB, segundo o Departamento de Orçamento do Congresso, Milei alega que a iniciativa compromete o equilíbrio fiscal, núcleo do seu plano econômico. O governo congelou as pensões por invalidez e as prestações de serviço de todos os setores da Saúde que acompanham os deficientes (terapeutas, fonoaudiólogas, psicólogas, etc). Também recortou auxílio em transporte e em medicamentos. Não aprova novos tratamentos, deixando milhares de deficientes em situação crítica.
Alguns profissionais recebem em pesos o equivalente entre 11 e 22 reais por hora em até 180 dias depois do serviço prestado num país com inflação acumulada de 220,45% desde que Milei chegou ao poder, em dezembro de 2023. O resultado é a desistência e o abandono de terapias.
A Emergência em Deficiência será até 31 de dezembro de 2027, quando termina o atual mandato do presidente. A lei obriga a regularizar os pagamentos devidos aos prestadores e atualiza os valores das prestações de serviço para deficientes, que passam a ser reajustadas automaticamente pela inflação. Também estabelece que pensões por invalidez no trabalho tornem-se pensões por deficiência, com acesso ao programa de atendimento médico especial.
Jéssica Escobar, de 35 anos, está dos dois lados do balcão. É prestadora de serviços a deficientes e mãe de Ian Acuña, de nove anos, com autismo.
“Venho para lutar pelos direitos do meu filho e dos meus pacientes. Como mãe, sinto-me muito triste. Cada vez, custa-nos mais burocracia apresentar exames e documentos para, no final do processo, negarem tratamentos, transportes e acompanhantes. Negam boa qualidade de vida aos deficientes. Como acompanhante terapêutica, vivo numa miséria. É muito difícil trabalhar assim. Muitos abandonam. É preciso ter muito coração para continuar”, descreve Jéssica à RFI em frente ao Congresso.
Ao seu lado, o pequeno Ian ergue um cartaz “Não ao veto”. Ian requer terapia ocupacional, psicologia, psicopedagogia e fonoaudiologia.
“Mas não conseguimos fonoaudióloga porque poucas querem trabalhar por tão pouco e receber 90 dias depois. Este governo não entende o que é viver com deficiência todos os dias. O presidente não tem empatia quando diz que ‘o problema não é do Estado’. Sinto que ele não está preparado para o cargo porque não pode sustentar o direito das pessoas”, critica Jéssica.
Segundo Milei, “se você teve um filho com deficiência, isso é problema da família; não do Estado”.
Insensibilidade social
Até agora, Milei vetou todas as iniciativas do Parlamento a favor de setores vulneráveis. As aprovações dos legisladores requerem maioria simples, enquanto um veto requer dois terços dos presentes para ser derrubado. Com hiper minoria no Congresso, Milei tem governado por decretos e vetos.
Porém, diferentemente dos aposentados, dos universitários e dos professores, no caso dos deficientes, as balas perfuraram o escudo dessa estratégia. A lei obteve um amplo apoio social.
Segundo a consultoria Synopsis, a grande maioria da população valoriza a disciplina fiscal do governo, mas prefere que o recorte passe por outros setores do Estado.
Para 74,5% dos entrevistados, a lei de Emergência em Deficiência não deve ser vetada. Apenas 21,3% são a favor do veto, um número inferior aos eleitores de Milei, indicando que até mesmo entre os seus apoiadores há discrepâncias com o governo.
Outro estudo, da consultoria Management & Fit, aponta que 67,4% é contra o veto, enquanto 28,3% é a favor.
“É bem claro que a derrubada do veto presidencial por parte da Câmara de Deputados é uma bofetada na cara de Milei. Até mesmo uma parte considerável dos apoiadores de Milei pede ao presidente um pouco mais de sensibilidade”, interpreta a analista política Shila Vilker, diretora da consultora Trespuntozero.
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