Reportagem

Livro ‘Brasil 1500–1549’ faz releitura crítica de primeiros relatos de contatos entre europeus e indígenas

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O livro Brésil 1500-1549: Les premières cartes récits & témoignages (Brasil 1500-1549: primeiros mapas, relatos e testemunhos) é uma coletânea de 12 textos primordiais, ilustrados com imagens de época, que abordam a chegada dos europeus e os primeiros contatos com os povos originários. A publicação propõe uma releitura crítica desses relatos e imagens, aprofundando o olhar para revelar estratégias de sobrevivência dos indígenas. 

Livro "Brésil 1500-1549", organizado por Ilda Mendes dos Santos, editado pela Chandeigne, traduz para o francês 12 textos primordiais sobre os primeiros contatos entre europeus e povos originários.
Livro "Brésil 1500-1549", organizado por Ilda Mendes dos Santos, editado pela Chandeigne, traduz para o francês 12 textos primordiais sobre os primeiros contatos entre europeus e povos originários. © Divulgação/Chandeigne & Lima
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Segundo a carta de Pero Vaz de Caminha, os portugueses chegaram ao Brasil em 22 de abril de 1500. Esse texto inaugural do "achamento" da nova terra pela armada de Pedro Álvares Cabral acaba de ser republicado na França pela editora Chandeigne & Lima. A carta, endereçada ao rei Dom Manuel I de Portugal, abre a coletânea.

Brasil 1500-1549 é uma reedição ampliada e ilustrada do livro A Descoberta do Brasil, publicado em 2000 também pela Chandeigne & Lima. A nova edição conta com um prefácio inédito de Ilda Mendes dos Santos, professora da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. As ciências sociais e históricas evoluíram nos últimos 25 anos, e a mudança do título se mostrou necessária. A leitura contemporânea identifica, nessas narrativas, estratégias de sobrevivência dos povos indígenas.

“Falar em descoberta, ou mesmo usar a palavra encontro, suscita dissonâncias e polêmicas, pois desde 2000 houve um intenso trabalho nas ciências sociais e históricas para restituir o lugar daqueles que foram colonizados e escravizados. Por isso, pensamos a complexidade em construção, para recuperar também parte da ação, da reação e da ponderação dos povos contactados, que os textos também revelam”, explica a organizadora Ilda Mendes dos Santos.

A coletânea traz a tradução para o francês de 12 relatos, cartas e ilustrações. Os documentos expressam, além das imagens de uma terra paradisíaca e de indígenas dóceis, ambivalências, perplexidades, fascínio, medo, violência e ironias sobre as primeiras décadas da presença portuguesa e o contato fatal, mas irreversível, com os povos originários. Tudo é filtrado pelo olhar europeu.

As ilustrações, gravuras de época e mapas, de impressionante precisão, dialogam com os textos. As imagens trazem clichês e fabulações, mas também indícios dos saberes indígenas.

“Há uma escola brasileira de cartografia que está revisitando o que esses mapas dizem. Não devemos ver essas imagens apenas como ilustrações ou fabulações ocidentais. É preciso analisar os corpos, as tatuagens, os gestos. Ver também a complexidade da nomeação dos indígenas, que podem estar representados por artefatos ou pinturas corporais. Essas representações dizem algo que foi observado, e é importante lembrar que nossos saberes estão sempre em construção e devem ser constantemente confrontados”, salienta.

O primeiro francês a desembarcar no Brasil

Entre os 12 textos, está o relato da viagem do francês Gonneville a Santa Catarina, em 1503, que teria sido o primeiro francês a desembarcar no Brasil. Como outras nações, a França contestou a divisão do mundo entre portugueses e espanhóis estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas e enviou, desde os primeiros anos do século XVI, expedições à costa brasileira. No entanto, a historiografia atual questiona a veracidade da viagem de Gonneville.

O texto pode ter sido uma ficção criada no século XVII, mas Ilda Mendes dos Santos optou por mantê-lo na coletânea por ter alimentado o imaginário histórico e cultural da relação França-Brasil. O relato da viagem de Paulmier de Gonneville, que teria trazido para a França o primeiro indígena brasileiro, virou livro de sucesso, inspirou filmes, como o curta Uns e Outros, de Tunico Amâncio, e é celebrado em Santa Catarina.

“Os registros cartográficos e os testemunhos dos primeiros contatos franceses com o Brasil datam apenas de 1520, e não de 1505, como dizia Gonneville. Apesar disso, o que o relato diz sobre esses primeiros contatos é plausível. E mais: esse texto abriu um imaginário, uma história em Santa Catarina. Não é apenas uma filiação folclórica. Temos comemorações desde o século XIX, mas sobretudo nos últimos 21 anos. Isso também precisa ser levado em conta”, defende.

Nomes múltiplos

Novo Mundo, Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Terra dos Papagaios, Canibais, Terra do Brasil. No início, o território recebeu muitos nomes. A impressão e circulação desses primeiros relatos e ilustrações desde o século XVI foram fundamentais para consolidar o nome “Brasil”, oriundo da principal riqueza local, e para construir um imaginário coletivo sobre a terra conquistada pelos portugueses. A coletânea termina com a carta do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, ao rei Dom João III, que marca o início de uma verdadeira política de colonização.

E hoje?

Citando o filósofo e ambientalista indígena Ailton Krenak, Ilda Mendes dos Santos desenvolve a tese do "eterno retorno do encontro".

“Quando Ailton Krenak fala do ‘eterno retorno do encontro’, ele aponta que o texto de Caminha, o texto de Vespúcio, revelam essa ambivalência do contato, que pode ser mortal, mas que também continua até os dias de hoje. O Brasil é muita terra (...) ainda muito injustiçada, muito desigual, muito violenta, e é o que dizem esses processos descontínuos”, conclui Ilda Mendes dos Santos.

Brasil 1500-1549 foi publicado em francês pela editora Chandeigne & Lima, em formato de livro de bolso, com o objetivo de facilitar a circulação dos textos essenciais sobre o início do contato entre europeus e povos originários.

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