Festival de Circo franco-brasileiro 'Aldeia de Tous' propõe ideias para adiar o fim do mundo
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A Temporada Cultural França-Brasil 2025 abriu espaço para um projeto inédito: a coorganização de um festival de circo realizado dos dois lados do Atlântico. O evento Circo de Nós / Aldeia de Tous foi inaugurado nesta quarta-feira (24), em Toulouse, no sul da França. A versão brasileira acontecerá em novembro, na cidade de Recife. A cocuradora brasileira, Danielle Hoover, espera que esta seja apenas a “primeira semente” e que o projeto tenha “continuidade anual”, promovendo o intercâmbio entre as cenas circenses contemporâneas da França e do Brasil.

Uma ocupação artística e festiva marca o encerramento da programação da Temporada Cultural Cruzada França-Brasil em Toulouse. A Fábrica de Artes Circenses La Grainerie, que tradicionalmente organiza um festival europeu, neste ano acolhe o projeto Aldeia de Tous, em parceria com o Festival de Circo do Brasil. Esta é a primeira vez que o evento, realizado desde 2003 em Recife, acontece fora do país.
Danielle Hoover, fundadora do Festival de Circo do Brasil e cocuradora do Aldeia de Tous, reforça a proposta de continuidade. “Esse projeto foi pensado especialmente para promover esse fluxo entre França e Brasil, neste ano de colaboração cultural, com o objetivo de apresentar o que há de mais atual no circo brasileiro. Já temos uma longa trajetória de trabalho conjunto com instituições francesas, e esse projeto surgiu como uma proposta de continuidade. A nossa expectativa é que esta seja a primeira de várias edições.”
A versão francesa, intitulada Europeia de Circo, apresenta até domingo (28) uma programação diversa, com espetáculos, oficinas, residências artísticas, música e gastronomia brasileira. O chef César Santos veio especialmente de Recife para apresentar a culinária pernambucana ao público francês. Artistas brasileiros radicados na França e em outros países europeus também participam com seus trabalhos.
O circo é abordado como uma arte transdisciplinar, e temas como sustentabilidade, democracia, gênero e ancestralidade são levados ao centro do picadeiro. A proposta do Aldeia de Tous é inspirada no pensamento de Ailton Krenak, ambientalista, filósofo e primeiro indígena a integrar a Academia Brasileira de Letras.
“Ele (Krenak) propõe um novo olhar sobre o mundo, com ideias para adiar o fim do mundo, como sugere uma de suas obras. Estamos tentando construir um festival que una o circo, a música e o pensamento, inspirados por essa filosofia. Acreditamos que refletir sobre temas urgentes — como sustentabilidade e convivência humana — é essencial. Vivemos em uma ‘aldeia’, juntos, e o circo tem múltiplas habilidades e possibilidades de expressar essas ideias”, ressalta Danielle.
Três espetáculos brasileiros
Três espetáculos brasileiros apresentados em Toulouse abordam essas temáticas. "O Vazio é Cheio de Coisas", da artista Poema Mühlenberg, trata da sustentabilidade e da relação entre corpo e natureza. "Faminta", de Natasha Jascalevich, aborda o desejo feminino e a grave questão do feminicídio.
"Assum Preto", de Marco Motta, trata de racismo, miscigenação, religiosidade e ancestralidade — elementos centrais da brasilidade. Inspirado por músicas como Assum Preto, de Luiz Gonzaga, e Blackbird, de Nina Simone, o espetáculo nasce da experiência do artista como imigrante negro vivendo na Europa.
“É uma situação bastante complexa hoje em dia. Muita violência, muita angústia, muitas questões. Falo da minha experiência aqui, através do circo, absorvendo referências de dois artistas grandiosos do continente americano: Nina Simone e Luiz Gonzaga. Minha vida contemporânea negra imigrante não é a mesma do contemporâneo branco, europeu, cis, normativo. Minha arte contemporânea é outra.”
O espetáculo conta com música ao vivo e três músicos brasileiros, além de uma linguagem corporal própria desenvolvida de forma autodidata, que combina salto, break dance e contorção.
“Comecei na margem, fazendo break na rua. Nunca fiz escola. A influência europeia foi mínima, porque eu não tinha condição de pagar. Mas, apesar das circunstâncias, consegui criar uma linguagem própria.”
Cabaré de Pensamentos
Marco Motta também é pintor e expõe algumas de suas obras em Toulouse. Ele ainda ministra workshops durante a Europeia de Circo e participa da performance NonSense – Cabaré de Pensamentos.
Essa conferência-espetáculo reúne artistas, filósofos, uma ativista quilombola e uma psicóloga indígena da etnia Guarani, para refletir sobre as crises atuais — ecologia, democracia e o fim da civilização ocidental — utilizando o corpo como meio de expressão. A artista circense brasileira Amanda Homa, radicada na França, é assistente de direção e cocriadora do espetáculo.
“A proposta é mostrar que uma discussão ou debate sobre um tema social e coletivo pode ser feito por meio de diferentes linguagens. Não precisa se restringir à linguagem verbal e intelectual. A arte também tem seu lugar, trazendo novas formas e aberturas para o pensamento sobre questões coletivas. É um projeto híbrido”, explica.
Após Toulouse, o Aldeia de Tous atravessa o Atlântico e será apresentado em Recife, de 1º a 9 de novembro, durante a 19ª edição do Festival de Circo do Brasil, que também contará com espetáculos e companhias francesas. A abertura terá a presença de Ailton Krenak, que inspira o evento.
“É um festival com engajamento. Mas tudo isso tem humor, tem habilidade, tem dança, tem poesia, tem música, para que a gente possa falar disso também celebrando — porque também é importante que a gente faça festa sobre o nosso dia a dia”, pontua Danielle Hoover, reiterando que o circo é uma linguagem artística, reflexiva e coletiva.
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