Reportagem

Exposição na França revela dinamismo e resistência da cultura das periferias do Rio e de Paris

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Os versos “Pode crê! Mas só pra te lembrar: Periferia é periferia em qualquer lugar”, da música Periferia Brasília, do rapper GOG, abrem a exposição Les Lucioles (“Os vaga-lumes”, em português): arte, cultura e esperança nas periferias urbanas do Rio de Janeiro e de Paris. A mostra, resultado de uma pesquisa acadêmica conjunta entre França e Brasil, está em cartaz na Maison de Sciences de l’Homme, em Saint-Denis, na periferia norte de Paris.

Cartaz da exposição "Les Lucioles", em cartas na Maison de Sciences de l'Homme, em Saint-Denis, até janeiro de 2026.
Cartaz da exposição "Les Lucioles", em cartas na Maison de Sciences de l'Homme, em Saint-Denis, até janeiro de 2026. © Divulgação
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A exposição revela a prática e a produção de coletivos culturais das periferias do norte e oeste do Rio de Janeiro e de Paris, especialmente de Saint-Denis e Stains. Ela é fruto de uma pesquisa codirigida pelas professoras Silvia Capanema, da Universidade Sorbonne Paris Nord, e Adriana Facina, do Museu Nacional da UFRJ.

Durante mais de dois anos, os pesquisadores observaram as formas de criação e resistência de 30 coletivos periféricos cariocas e parisienses. Com fotos, textos e vídeos acessíveis por QR Codes, a exposição destaca a produção de 14 desses grupos — metade brasileiros, metade franceses — evidenciando o caráter comparativo e dialógico da pesquisa.

Silvia Capanema e Adriana Facina, codiretoras da pesquisa que deu origem à exposição "Lucioles: arte, cultura e esperança nas periferias urbanas do Rio e de Paris".
Silvia Capanema e Adriana Facina, codiretoras da pesquisa que deu origem à exposição "Lucioles: arte, cultura e esperança nas periferias urbanas do Rio e de Paris". © RFI/A.Brandão

 

“Uma teoria pensada no Brasil pode ajudar a refletir sobre as periferias francesas hoje (e vice-versa). Então, mostramos essa transferência de experiências práticas e de formas de pensar as periferias”, explica Silvia Capanema.

O estudo revelou uma dinâmica intensa e uma diversidade cultural “impressionante” nas periferias, que vai muito além do hip hop. “Quando se pensa em periferia, muitas vezes se associa apenas ao movimento hip hop. Mas há muito mais: samba, coletivos de artistas, música clássica, teatro, choro... A cultura popular é muito rica”, afirma a professora da Sorbonne Paris Nord.

Outro ponto relevante observado foi a presença do “Sul global no Norte global”, especialmente na Europa. “Vimos isso na França, nas periferias, com forte presença de imigrantes e do Caribe francês. O Carnaval chega à França por meio do Caribe francês e das periferias”, destaca Silvia Capanema.

Carnaval como metáfora

O Carnaval, representado na exposição por três coletivos — os brasileiros Loucura Suburbana e Barracão da Mangueira, e o francês Action Créole — aparece como uma metáfora poderosa dessa dinâmica.

A antropóloga Patricia Birman, da UERJ, participou da jornada de estudos que inaugurou a exposição em 12 de setembro, falando sobre o Carnaval no Brasil e na França. Segundo ela, “o que une é a festa. Qualquer festa pode ter um sentido carnavalesco. E a música — a potência da música nos grupos é essencial”.

Adriana Facina, que estuda há anos o coletivo Loucura Suburbana, destaca que os coletivos não fazem apenas cultura: “Para eles, cultura é trabalho”.

Um bom exemplo é o Carnaval carioca. Sthefanye Paz, que defendeu uma tese de doutorado sobre a Mangueira, lembra que a importância do Carnaval para a comunidade vai muito além dos quatro dias de festa.

“O Carnaval funciona com uma base de trabalho de cerca de dez meses por ano, não é só aquela única semana. São muitas pessoas envolvidas, correndo atrás dos seus sonhos para que o Carnaval aconteça nas ruas. Minha pesquisa faz essa relação entre a festa e o trabalho das pessoas que a constroem”, relata a pesquisadora, que também participa da cadeia produtiva da escola de samba desenvolvendo enredos.

 

Formas contemporâneas de movimentos sociais

A precariedade de sobrevivência e a luta por reconhecimento e estabilidade são semelhanças estruturais entre as periferias dos dois países. Os coletivos culturais têm papel central na vida das comunidades e atuam como formas contemporâneas de movimentos sociais.

Adriana Facina explica que o nome da exposição se inspira no conceito de “vaga-lumes” do filósofo francês Georges Didi-Huberman, que reflete sobre o papel dessas “luzes frágeis e intermitentes, que apontam caminhos alternativos em períodos muito sombrios”, como o fascismo.

“Para nós, hoje, os movimentos culturais das periferias urbanas — especialmente em Paris e no Rio de Janeiro — são esses vaga-lumes. Eles enfrentam o racismo, a xenofobia, a extrema direita e o capitalismo em sua fase mais selvagem, marcada pela precarização e pela perda de direitos”, detalha a pesquisadora do Museu Nacional. “O que esses coletivos propõem em seus territórios aponta caminhos para transformar o mundo em outra direção”, completa.

Orgulho suburbano

A cultura periférica vem ganhando espaço e se tornando o centro da inovação cultural. Sandra Sá Carneiro, da UERJ, que estuda o coletivo 100% Suburbano, destaca a valorização atual da cultura suburbana.

“Esses coletivos atuam justamente valorizando essa identidade e a cultura suburbana. Há várias manifestações culturais. O grupo que estudo trabalha com o choro, como forma de resgatar a identidade e a sociabilidade carioca. Outros coletivos atuam com cinema, teatro, Carnaval, samba... É uma grande aposta em repensar essas regiões, marcadas por forte territorialização e desigualdade social”, afirma Sandra Sá Carneiro.

Lição brasileira de democracia

A exposição Les Lucioles foi inaugurada no dia seguinte à condenação do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro pela trama golpista. A coincidência foi considerada simbólica pelas codiretoras da pesquisa.

Segundo Silvia Capanema, que além de professora é deputada regional de Saint-Denis, “a França está interessada em entender que lição de democracia o Brasil está dando. Esses coletivos culturais também são frutos de processos democráticos. Sem democracia, não há cultura, não há diversidade. Eles também defendem a democracia, pois são fortemente contrários ao fascismo”.

Adriana Facina retoma uma ideia do filósofo Paulo Arantes e fala da “brasilianização” do mundo, como a ampliação da precarização do trabalho. “Mas também há uma ‘brasilianização’ positiva, que é a potência das periferias.”

Para ela, com a condenação de Bolsonaro, surge uma terceira comparação: “Hoje, podemos falar de uma ‘brasilianização’ do mundo no sentido de uma defesa radical da democracia. O Brasil está dando uma lição ao mundo. Espero que isso inspire outras democracias, às vezes consideradas mais fortes que a nossa”, diz.

 

Democratização da ciência

Em vez de encerrar a pesquisa com os tradicionais artigos e livros acadêmicos, as organizadoras optaram por uma exposição para ampliar o alcance e democratizar a ciência.

“Sabemos que livros e artigos são muito importantes, mas não atingem um público amplo, especialmente o não especializado. Nossa ideia foi fazer da exposição um resultado acessível da pesquisa, voltado ao maior número de pessoas possível — sobretudo aos próprios participantes da pesquisa: os coletivos culturais que abriram suas portas, responderam às nossas perguntas e atuaram como cocuradores, enviando fotos e participando ativamente do processo”, compartilha Adriana Facina.

A exposição Les Lucioles: arte, cultura e esperança nas periferias urbanas do Rio e de Paris fica em cartaz na Maison de Sciences de l’Homme, em Saint-Denis, periferia norte de Paris, até 30 de janeiro de 2026.

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