Reportagem

Pesquisadores gaúchos fazem performance artística em Paris para lembrar tragédia das enchentes no RS

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Mais de um ano depois das enchentes históricas que assolaram o Rio Grande do Sul, algumas marcas e traumas da catástrofe continuam presentes. Para refletir e preservar a memória deste triste episódio, os artistas e pesquisadores gaúchos Marta Haas e Pedro Isaias Lucas iniciaram um trabalho conjunto de registros das consequências e das marcas deixadas pelas inundações, que aconteceram em maio de 2024.

Em Paris, os pesquisadores gaúchos Pedro Isaias e Marta Haas recordaram as consequências dramáticas das enchentes no Rio Grande do Sul por meio de uma performance artística.
Em Paris, os pesquisadores gaúchos Pedro Isaias e Marta Haas recordaram as consequências dramáticas das enchentes no Rio Grande do Sul por meio de uma performance artística. © Renan Tolentino / RFI Brasil
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Renan Tolentino, da RFI, em Paris

Os dois pesquisadores brasileiros vieram a Paris para mostrar o resultado de meses de pesquisa. A apresentação em solo francês faz parte da programação cultural do Ano do Brasil na França, que visa fortalecer os laços diplomáticos entre os dois países. No trabalho, Marta e Pedro abordam a temática da memória nas artes cênicas e no audiovisual.

“A ideia da pesquisa surgiu a partir de uma conversa com a nossa orientadora acadêmica, professora Graça dos Santos. A partir daí, a gente resolveu trabalhar com as nossas impressões e vivências da enchente, levantar dados, buscar testemunhos e marcas na cidade (Porto Alegre). O objetivo era fazer uma coleta de informações e de imagens para formar um corpo de testemunho para as pessoas que não viveram essa catástrofe climática”, explica Pedro.

Indicação no Museu de Arte do Rio Grande do Sul mostra o nível em que a água chegou durante as enchentes de maio 2024.
Indicação no Museu de Arte do Rio Grande do Sul mostra o nível em que a água chegou durante as enchentes de maio 2024. © Marta Haas / Arquivo Pessoal

Formados também em artes cênicas, eles aliaram os registros audiovisuais a uma palestra-performance intitulada "Anotações sobre uma enchente e suas marcas", para apresentar a pesquisa ao público de uma forma mais sensível e reflexiva.

“A gente já tinha trabalhado com esse formato da palestra-performance antes, quando a gente esteve aqui em Paris apresentando outro trabalho, que fazia um paralelo sobre as ditaduras brasileira e portuguesa. Então, a gente pensou que este mesmo formato, no qual a gente traz esses dados da pesquisa, aliado a esse momento mais performático, no qual a gente traz a presença, traz o corpo e a encenação. Isso potencializa o impacto no público, como o público percebe as informações que a gente está apresentando”, complementa Marta.

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Na terça-feira (16), os dois estiveram na Universidade Paris Nanterre e, nesta quarta (17), apresentaram a palestra-performance na Casa Portugal, na Cidade Universitária, sob os olhares atentos dos alunos do Colégio Montaigne.

“Foi marcante e impressionante, para mim, ouvir sobre essas inundações através do trabalho deles. Também foi interessante ouvir o relato dos moradores contando sobre como fizeram para sobreviver”, reflete a estudante franco-brasileira Madeleine Machado, que vive em Paris com a família.

Uma terceira apresentação ocorrerá nesta quinta-feira (18), às 19h, na Casa Brasil, que também fica na Cidade Universitária.

Cidade marcada pela inundação

Meses depois da tragédia, algumas paredes de Porto Alegre ainda guardam marcas da altura que a água atingiu durante as enchentes.
Meses depois da tragédia, algumas paredes de Porto Alegre ainda guardam marcas da altura que a água atingiu durante as enchentes. © Arquivo Pessoal

Imagens coletadas por Marta e Pedro em fachadas de imóveis mostram as marcas deixadas pela água, meses depois da tragédia. Pedro conta que foram feitas quase uma centena de imagens em diversos locais de Porto Alegre, onde a pesquisa se concentrou.

A performance tem diferentes camadas, com elementos informativos e lúdicos, incluindo uma representação do cavalo ilhado em Canoas, que se tornou um dos símbolos da catástrofe, lembrando o drama vivido também pelos animais.

Ao longo da apresentação, os dois se vestem com trajes de limpeza em referência aos trabalhos pós-inundações – etapa igualmente difícil de enfrentar, segundo eles. 

Uma boa parte do tempo é dedicada ao relato pré-gravado de moradores que vivenciaram as inundações e tiveram suas vidas afundadas na lama, com danos materiais e emocionais.

Vivendo drama na pele

Uma vista de drone mostra um centro da cidade inundado depois de as pessoas terem sido evacuadas em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em 5 de maio de 2024.
Uma vista de drone mostra um centro da cidade inundado depois de as pessoas terem sido evacuadas em Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em 5 de maio de 2024. REUTERS - Renan Mattos

As enchentes de maio de 2024 foram as piores já registradas no Rio Grande do Sul, atingindo 450 cidades ao longo de duas semanas, deixando mais de 180 mortes e 200 mil desabrigados.

Naturais de Porto Alegre, Marta Haas e Pedro Isaias sentiram na pele o drama da catástrofe. A sede do grupo teatral “Oi Nóis Aqui Traveiz”, do qual os dois fazem parte, foi invadida pela água, causando grande prejuízo material.

“O teatro onde a gente trabalha também foi alagado. Permaneceu alagado durante quase um mês. A água chegou a 1,70m de atura. Também registramos a situação quando a gente pôde reabrir. É um momento bem impactante quando a gente reabre um espaço que ficou tanto tempo debaixo d’água, ao mesmo tempo que foi um ato coletivo a reabertura do teatro, porque tinha dezenas de pessoas dispostas a ajudar a limpar. Passamos muitos dias fazendo a limpeza”, recorda Marta.

Um homem em um barco em frente a casa inundada em Canoas, no sul do Brasil, em 13 de maio de 2024.
Um homem em um barco em frente a casa inundada em Canoas, no sul do Brasil, em 13 de maio de 2024. © Nelson ALMEIDA / AFP

Também presente para acompanhar a performance, a professora Graça dos Santos, orientadora dos brasileiros e coordenadora do Departamento de Estudos Lusófonos da Universidade Paris Nanterre, estava no Brasil quando as enchentes começaram. Ela relatou sua incredulidade diante da quantidade de chuva que caiu no estado e ressalta a importância do trabalho dos pesquisadores brasileiros para gerar uma reflexão sobre o ocorrido.

“Não parou de chover o tempo todo em que estive lá (10 dias) e a água começou a subir muito. Mas também pude constatar a solidariedade das pessoas, que se dispuseram rapidamente para ajudar o próximo (...) O trabalho que a Marta e o Pedro fazem é muito importante do ponto de vista científico e artístico, pois também são artistas, o que dá uma repercussão e força ao trabalho de investigação deles”, opina Graça dos Santos.

Percepção atual

Passados quase 18 meses da catástrofe, Marta e Pedro relatam o temor de que algo semelhante venha a acontecer novamente e lamentam que a sensação atual é de que não houve avanço no que diz respeito à prevenção.

“A percepção que a gente tem é que ainda estão tentando consertar o sistema antienchente, a população quer isso, porém temos gestores públicos que negam o aquecimento global, acreditam que o que aconteceu foi um caso atípico, que a natureza foi a responsável”, lamenta Pedro.

Os dois pesquisadores trabalham para preservar a memória das terríveis consequências das enchentes de 2024 no estado. A sociedade gaúcha, por sua vez, espera que as autoridades se mobilizem para que este episódio fique só na lembrança e não volte a se repetir.

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