“No século 21, voltar ao domínio militar é uma tragédia”, diz Paulo Sérgio Pinheiro, ex-relator da ONU, sobre Mianmar
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A tomada de poder em Mianmar pela junta militar deve provocar um retrocesso nos direitos humanos e uma forte repressão aos opositores do regime, na opinião de Paulo Sérgio Pinheiro, ex-relator especial da ONU para o país. No entanto, a população deve se manifestar e, apesar dos riscos, atender ao chamado de resistência atribuído a Aung San Suu Kyi, que foi presa junto com outras lideranças.
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“É uma frustração imensa. Um país que viveu meio século de governo militar, voltar no século 21 ao domínio militar é uma tragédia, um pesadelo”, diz Paulo Sérgio sobre a volta dos militares ao comando do país, interrompendo uma transição democrática gradual iniciada há 10 anos.
A junta tomou o poder alegando fraudes nas últimas eleições legislativas de novembro, quando o partido Liga Nacional pela Democracia (LND) teve uma vitória arrasadora ao eleger 396 representantes de um total de 476 cadeiras do parlamento.
Para Paulo Sérgio Pinheiro, a origem do golpe está relacionada à aprovação, em 2010, de uma lei que assegurava um total de 25% do parlamento aos militares, um problema “fundamental” para o país.
Apesar do cargo de Conselheira de Estado, San Suu Kyi era quem de fato exercia o comando de Mianmar, e o sucesso de seu partido nas eleições de 2015 e na de 2020 gerou nos militares mais temor de mudanças constitucionais.
25% dos votos controlados por militares
“Hoje vendo o golpe e todo esse ressentimento das Forças Armadas, eu não creio que a relação dela (com os militares) tenha melhorado. Suu Kyi fez enormes concessões, mas a expectativa dela era mudar a Constituição. Houve a acusação de fraude eleitoral, que é grave, mas na verdade o que está por trás é o medo de mudança na Constituição e essa maldita cláusula dos 25%. Ou seja, não há a menor chance de mudar a Constituição com um quarto dos votos controlado pelos militares”, afirma.
“Os militares temiam especialmente que fosse retirada da Constituição o artigo que proíbe a líder do LND de efetivamente ser presidente do país”, afirma Pinheiro em referência ao artigo que impede de assumir a presidência quem tiver um cônjuge estrangeiro ou ter filhos fora do país, caso de Suu Kyi.
Sanções econômicas não resolvem
Segundo o ex-relator da ONU, a população deve atender ao apelo de resistência atribuído a Aung San Suu Kiy, apesar das muitas dúvidas surgidas na população por ela estar presa e a mensagem ter sido considerada pouco clara.
“Durante o meu período pré-abertura, a população foi capaz de se manifestar, mesmo nos piores momentos dos militares no poder. Ela (Suu Kyi) tem um apelo popular enorme. Pela frustração das acusações de fraude nas eleições, creio que a sociedade civil vai se manifestar”, opina.
No entanto, os riscos para os opositores são grandes, alerta o ex-relator da ONU sobre direitos humanos em Mianmar entre 1999 e 2008. A transição democrática permitiu a volta de muitos exilados políticos e o maior engajamento dos opositores, que hoje se tornaram mais conhecidos do regime.
“Nos últimos anos, eles deram as caras, as antigas oposições democráticas passaram a atuar. Os exilados atenderam ao apelo de Aung San Suu Kyi para que retornassem. Hoje, os militares estão muito mais preparados do que antes para fazer uma repressão focalizada. O fichário deles está muito melhor e vai ser muito fácil de reprimir”, alerta.
Muitos países ocidentais condenaram o golpe de Estado e o presidente americano Joe Biden acenou com a possibilidade de aplicar sanções econômicas, o que para Paulo Sérgio Pinheiro não tem efeitos desejados.
“Desde a época em que eu era relator especial, não acredito em sanções econômicas, elas batem na população. A classe dominante sempre se sai melhor nas sanções”, argumenta.
No atual contexto, ele não vê muitas possibilidades de pressão efetiva contra a junta militar. “Não há muitos instrumentos para influenciar. Especialmente com a presença da China e com o poder militar que só se consolidou em termos econômicos e da continuidade das ações contra os rohingas na província de Rakhine”, lembra.
Injustiça com Suu Kyi
Na entrevista à RFI, Paulo Sérgio Pinheiro defende vigorosamente a líder Aung San Suu Kiy, duramente atacada nos últimos anos por não ter condenado abertamente o massacre dos rohingas, minoria muçulmana perseguidas no interior do país. Ele ainda considerou “idiota”, a iniciativa, que não prosperou, de retirar de Suu Kyi o título de Prêmio Nobel da Paz de 1991.
“O Ocidente, que não tem autoridade moral nenhuma para dizer alguma coisa sobre obrigações de direitos humanos, reagiu de uma maneira muito moralista, abstraindo das dificuldades concretas que ela estava enfrentando com os militares. Ela, de certa maneira continuou isolada internacionalmente”, diz.
Pinheiro disse ter sido acertada e justa a interferência da Corte Internacional de Justiça diante das denúncias "gravíssimas" de massacre da etnia rohinga, mas o episódio enfraqueceu Suu Kiy como líder democrática, avalia.
“É claro que é de se lamentar a incapacidade de ação dela para reprimir as violações dos direitos humanos por parte das Forças Armadas. Não estou assumindo que eles tinham direito de fazer o que fizeram. A situação dela era dramática. E o Ocidente, que a tinha endeusado durante os 15 anos de prisão, de repente, (diz que) se tornou uma tirana, uma autocrata. A situação era mais complexa. Naquele momento era preciso um diálogo e não uma denúncia como a mídia internacional fez”, ataca.
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