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“França vai seguir pressionando por direitos indígenas e meio ambiente no Brasil”, diz Eloy Terena

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Uma delegação de indígenas brasileiros, representantes de todas as regiões do país, faz um giro pela Europa para denunciar a importação pela União Europeia de produtos oriundos do desmatamento ilegal em terras indígenas. O advogado e coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena, integra o grupo que foi recebido pela equipe da nova ministra francesa das Relações Exteriores, Catherine Colonna.  

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Eloy Terena, Advogado indígena e coordenador jurídico da Apib
Eloy Terena, Advogado indígena e coordenador jurídico da Apib © RFI
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Em Paris, a delegação indígena brasileira acompanhou na semana passada a primeira audiência de um processo que a Apib e outras ONGs ambientalistas internacionais movem contra a multinacional francesa Casino, presente no Brasil com o grupo Pão de Açúcar.

Casino é acusado na Justiça francesa de envolvimento no desmatamento ilegal da Amazônia e invasão de territórios indígenas. O processo é possível na França graças à existência de uma lei pioneira no país que obriga as multinacionais a respeitarem os direitos ambientais e humanos em suas filiais. A primeira audiência definiu uma reunião de mediação para julho. “Um primeiro passo foi dado. Este é um litígio pioneiro, estratégico, no campo de direitos humanos e empresas”, diz Eloy Terena.

Ainda na capital francesa, os líderes indígenas brasileiros foram recebidos pela equipe da ministra das Relações Exteriores, Catherine Colonna, que em discurso recente criticou o acordo União Europeia-Mercosul justamente em relação a garantias insuficientes que produtos importados pelo bloco não coloquem em risco a floresta. “Trouxemos o recado que proteger o meio ambiente é proteger esses povos, e protegendo esses territórios você garante uma proteção para toda a humanidade”, salienta o coordenador jurídico da Apib.

A partir desta segunda, a delegação está em Bruxelas para reuniões com representantes do Parlamento Europeu. Na pauta, a proibição da importação no bloco de commodities oriundas do desmatamento. “Outro aspecto que nós estamos também chamando a atenção é a aquisição de minérios provenientes de área de risco, especialmente o ouro”, informa Eloy Terena.

Nesta entrevista à RFI, o advogado indígena falou ainda sobre o novo adiamento da votação do Marco Temporal, sobre a queixa da Apib no Tribunal Penal Internacional contra o presidente Bolsonaro por crime contra a humanidade, genocídio e ecocídio, e sobre o sumiço do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na Amazônia.

RFI: A primeira audiência do processo contra o Casino em Paris atendeu a suas expectativas? 

Eloy Terena: O primeiro passo foi dado. É importante dizer que este é um litígio pioneiro, estratégico, no campo de direitos humanos e empresas. De um lado organizações indígenas que estão processando uma empresa com base na lei da devida diligência. Relatórios apontam que a carne comercializada na rede de supermercados tem origem na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, que hoje conta com uma forte presença de invasores. O processo foi instaurado e a primeira audiência atende nossa expectativa. É comum abrir esse prazo para a mediação, mas nós queremos ao final a condenação. Não vamos fugir do diálogo, mas queremos a responsabilização dessas empresas.

Esse processo pode criar jurisprudência?

A jurisprudência desse caso será fundamental para orientar o trabalho das organizações indígenas e para mandar um recado muito forte para que as empresas e seus administradores tenham responsabilidade no respeito aos direitos humanos, povos indígenas e direitos ambientais.

Pode pressionar o Brasil, o congresso brasileiro, a adotar leis que protejam efetivamente os direitos fundamentais dos povos originários?

A deputada Joenia Wapichana iniciou um debate interno sobre uma lei de rastreabilidade buscando esse tipo de comportamento na cadeia de produção no Brasil. A iniciativa foi muito criticada. Isso não faz parte da cultura no Brasil, influenciada por uma bancada ruralista muito forte. Mas é preciso que essa dimensão moderna, de você adotar essa legislação, influencie o Brasil.

Qual a sua reação sobre o novo adiamento da votação do Marco Temporal?

A votação estava prevista no Supremo Tribunal Federal (STF) e a nossa avaliação é muito negativa. Os povos indígenas estão há muito tempo aguardando uma posição da Suprema Corte brasileira para que haja uma definição. Quanto mais perdura essa demora, mais você vai ter comunidades internas fora de seus territórios, aguardando a demarcação de suas terras e, por outro lado, o agronegócio continuará explorando os nossos territórios. O tempo corre a favor do agronegócio e nós queremos uma posição definitiva.

Isso também foi influenciado, a nosso ver, pela guerra política do governo Bolsonaro com o poder judiciário, o STF. O presidente Jair Bolsonaro já vinha ameaçando não cumprir a decisão do supremo caso o Marco Temporal fosse rejeitado. Isso é inadmissível em um regime democrático. Nós vimos como isso foi uma estratégia do Bolsonaro e de pessoas ligadas ao agronegócio para pressionar o supremo a retirar de pauta este processo que é tão fundamental para os povos indígenas. Não tem previsão para a votação e acreditamos não ela não deva voltar esse ano. É um tema sensível politicamente, envolvendo os povos indígenas, e como nós estamos num ano eleitoral acreditamos que muito provavelmente o Supremo não retome o tema esse ano.

Como foi o encontro em Paris com a equipe da ministra francesa das Relações Exteriores, Catherine Colonna?

Nós nos reunimos com a equipe que acompanha tanto as discussões a nível da União Europeia, quanto o que está acontecendo no Brasil. Uma das principais mensagens foi esse compromisso da França de continuar pressionando os outros estados para que os direitos indígenas e o meio ambiente, especialmente a Amazônia, sejam respeitados no Brasil. Lembramos a presença (na França) do cacique Raoni, em 2019, e a importância que ele teve nessa discussão em abrir esse diálogo.

Outro ponto fundamental foi essa lei sobre importação de produtos que oferecem riscos para a floresta. Nós falamos da necessidade de incluir nesse projeto de lei a dimensão indígena do problema. Você deve respeitar a Amazônia brasileira, mas também os outros biomas que estão presentes no Brasil: Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal que são ecossistemas fundamentais. No conjunto, cada um cumpre um papel fundamental. Dentro desses ecossistemas, tem os povos indígenas e as populações tradicionais que também merecem ser respeitadas. Proteger o meio ambiente é proteger esses povos e protegendo esses territórios, você garante uma proteção para toda a humanidade. Nós trouxemos esse recado de proteger esses direitos que são direitos coletivos.

Qual é a expectativa sobre a reunião com parlamentares europeus sobre a importação pelo bloco de commodities oriundas do desmatamento?

Essa discussão está sendo levada pela França, que atualmente preside a União Europeia, é será debatida também no Parlamento Europeu. O outro aspecto que nós estamos também chamando a atenção é que o Parlamento Europeu já tem uma resolução 821, de 2017, que trata da devida diligência na aquisição de minérios proveniente de área de risco, especialmente o ouro. Nós sabemos que 90% do ouro do Brasil é destinado à Europa, especialmente à Suíça. Chamamos a atenção para que haja também uma devida diligência em relação a essas empresas porque já está comprovado que 70% desse ouro vem ilegalmente de terras indígenas.

A gente tem feito muito essas agendas internacionais por entender que apenas os espaços internos no âmbito do Brasil não são suficientes para proteger os direitos humanos e também para levar esse recado de que a importância de se proteger esses territórios é de interesse de todos, não apenas do Brasil.

Como avaliou o primeiro encontro bilateral entre o presidente Jair Bolsonaro e o americano Joe Biden, à margem da Cúpula das Américas?

Nos surpreendeu muito a declaração do Biden. Nós sabemos que é público e notório o descompromisso do presidente Jair Bolsonaro com a Amazônia, as condutas dele nos últimos anos incentivando o incêndio na Amazônia brasileira, incentivado publicamente a atividade de garimpo ilegal nas terras indígenas, não demarcando as terras indígenas. A gente de fato desconhece esse compromisso alegado.

Outra questão é em relação à democracia. Estamos assistindo no Brasil o quanto o presidente Bolsonaro tem atacado as instituições, principalmente o Tribunal Superior Eleitoral, colocado em xeque a transparência das urnas eletrônicas. Esse tipo de discurso, levado a cabo pelo presidente Jair Bolsonaro, é um atentado sim à democracia brasileira. Nós estranhamos essa declaração do presidente Biden, mas enquanto indígenas estamos aqui na Europa para trazer a realidade vivenciada pelos povos indígenas no Brasil.

Entre as várias ações e iniciativas da Apib internacionalmente tem a queixa no Tribunal Penal Internacional, de Haia, contra o governo Bolsonaro por crimes contra a humanidade, genocídio e ecocídio. Como está o andamento dessa queixa, feita em agosto do ano passado, que é apenas uma das ações contra o governo Bolsonaro no TPI?

Atualmente, nos tempos no TPI quatro denúncias contra o presidente Jair Bolsonaro, e uma delas é a da Apib. Essa denúncia dos povos indígenas no Tribunal Penal Internacional é também inovadora. Ela já foi recebida pela procuradoria e está na fase que nós chamamos de análise preliminar. Isso já é importante porque demostra que os elementos apresentados são suficientes para abrir uma análise preliminar.

Uma questão levada é a não demarcação dos territórios indígenas. Na medida em que você não demarca terras e não protege os territórios já demarcados, você coloca em risco a sobrevivência física e a cultura de povos indígenas, especialmente a dos povos que vivem ainda em isolamento voluntário.

Outra questão é o ecocídio. A Apib há um bom tempo tem trazido nos discursos internacionais a necessidade de se reconhecer o crime de ecocídio, que é você elevar, além dos seres humanos, os rios, os lagos, a natureza, a flora, a fauna e inclusive os seres encantados que habitam esses lugares como sujeitos de direito que merecem ser respeitados. Hoje, o que estamos vendo, especialmente nas atividades ligadas à mineração e ao garimpo ilegal nas terras indígenas, é a total destruição desse ecossistema causando também a extinção de povos, de culturas e de ecossistemas presentes no país.

Essa situação gera muita violência na região. O sumiço do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips é resultado dessa violência?

Nós estamos neste exato momento chamando a atenção do mundo para esses dois desparecidos. O Bruno é um indigenista especializado no tema, conhece a região. Com certeza foram alvo dessa violência. Estavam transitando no Vale do Javari que é a terra indígena que concentra o maior número de povos isolados do mundo. Ela tem sofrido invasões por parte de madeireiros, garimpeiros e grileiros que querem esses territórios.

A gente chama atenção para a responsabilidade do Estado brasileiro. Foi preciso ter uma ordem judicial da Justiça Federal determinando que a União empreendesse todas as medidas necessárias e nós seguimos cobrando medidas efetivas para que os dois sejam localizados. Preciso dizer também que há indícios concretos que as ações criminosas naquela região tenham vitimado tanto o Bruno quanto o Phillips, que já estavam sendo ameaçados por conta do trabalho de vigilância e proteção que eles exercem na região.

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