Anti-heroína de Dostoiévski, 'Nastácia' ocupa Avignon: um clássico russo atravessado pelo Brasil
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Durante mais de um século, ela foi reduzida a coadjuvante nas leituras tradicionais de O Idiota, clássico de Fiódor Dostoiévski. Mulher marcada pela tragédia, vilanizada ou santificada à força, Nastácia permaneceu silenciada — até agora. No palco da mostra paralela do Festival de Avignon de 2025, ela retorna com voz própria, arrebatadora, no espetáculo brasileiro Nastácia, a partir de uma ideia original da atriz Flávia Pyramo, através da encenação meticulosa — e premiada — de Miwa Yanagizawa.
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Márcia Bechara, enviada especial a Avignon
Poucos personagens femininos da literatura russa são tão intensos, incômodos e desconcertantes quanto Nastácia Filíppovna Baráchkova, a mulher em torno da qual gira a tragédia de O Idiota, romance publicado por Fiódor Dostoiévski em 1869.
Lida por muito tempo como uma figura secundária — quase um “obstáculo” no percurso do príncipe Míchkin, protagonista da obra — ela emerge, em releituras contemporâneas, como o verdadeiro coração pulsante do livro: uma mulher que diz não. Não ao perdão. Não ao amor. Não à paz. Sobretudo, não aos papéis impostos a ela pela sociedade e pelos homens.
Sua rebelião poderia se irmanar à de figuras arquetípicas como Antígona, Medéia ou Lilith — mulheres que só puderam ser caladas pela morte. Nastácia não está louca: está em fúria. E Dostoiévski, ainda que sem compreendê-la inteiramente, a conserva intacta em sua raiva. Esse é, talvez, o maior paradoxo de seu gênio.
Nastácia Filíppovna (interpretada visceralmente por Flávia Pyramo, idealizadora do projeto) não é uma heroína. É uma ferida aberta. Bela demais, intensa demais, lúcida demais, ela carrega o estigma de uma juventude arruinada: seduzida e abusada por Tótski (vivido no palco pelo ator Chico Pelúcio, veterano e um dos fundadores do Grupo Galpão), um aristocrata que a “acolhe” para, na verdade, possuí-la, ela entra na vida adulta com a reputação destruída e um destino traçado. Espera-se que ela se arrependa, que peça perdão, que aceite seu lugar. Ela recusa. Completa o trio da montagem brasileira a submissão oportunista de Gánia, pretendente de Nastácia, que aceita se casar com ela por conveniência e influência de Tótski, vivido com precisão e humor pelo ator Lenine Martins.
Não muito longe do teatro onde a companhia brasileira encena o espetáculo, um caso que chocou a França foi julgado: a história terrível dos abusos perpetrados contra Gisèle Pélicot, francesa drogada pelo marido durante décadas e estuprada repetidamente por estranhos. Em uma homenagem extraordinária neste ano, o Festival de Avignon — dirigido por Tiago Rodrigues — fará uma reencenação do processo de Pélicot com um grupo de atores, intitulada Le Procès Pélicot (O Processo Pélicot), no dia 18 de julho.
"Nastácia passa por todos os abusos imagináveis e inimagináveis que nós, mulheres, conhecemos — do século 19 até hoje. Inclusive, a gente cita o nome de Gisèle na peça, quando fala de tantas outras mulheres [abusadas], desde Desdêmona até a adolescente da vida real que inspirou Dostoiévski a compor a personagem Nastácia", conta Flávia Pyramo.
"É impressionante ver [no texto do autor russo] essa figura, esse ser, naquela época... Porque hoje ainda, fazendo a peça, ela aparece tão avante [de seu tempo], nessa luta e, principalmente, nessa consciência da dignidade", pontua a atriz.
Com texto de Pedro Brício e direção artística de Miwa Yanagizawa, o espetáculo transcende a literatura clássica para dialogar diretamente com os conflitos atuais: o feminicídio, a banalização da violência, o apagamento histórico das mulheres.
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Misoginia estrutural
A peça não traz apenas uma releitura inovadora, mas também uma denúncia. A obra de Dostoiévski — assim como boa parte do cânone russo do século 19 — é atravessada por uma misoginia estrutural. As personagens femininas são constantemente condenadas a papéis de martírio, servidão ou loucura. Sonia, em Crime e Castigo, é a prostituta redentora. Grushenka, em Os Irmãos Karamázov, é a femme fatale manipuladora. Em quase todos os casos, a mulher é um instrumento — seja de punição ou de purificação masculina.
Nastácia Filippovna rompe esse destino. Ela não se arrepende, não se redime, não ama para ser perdoada. Ela denuncia. Sabota. Sobrevive, especialmente em sua versão brasileira. No lugar da doçura trágica de Míchkin, é a lucidez cortante de Nastácia que conduz a narrativa. Ela não é mais coadjuvante. É o centro nervoso do drama, a ferida exposta de uma sociedade que transforma desejo em punição. Vencedora de diversos prêmios — entre eles o Shell, o APTR e o Cesgranrio —, a montagem brasileira se impõe como um "ato poético e político".
Lucidez brutal
No centro de sua trajetória está a lucidez brutal, aquecida por toques de ironia brasileira. “Essa festa está muito caída”, reclama Nastácia, em determinado momento da peça, que gira em torno da comemoração de aniversário da protagonista. “Afinal de contas, somos ou não russos?”, gargalha a atriz, ao mesmo tempo em que o som de uma enorme batucada brasileira invade o teatro e o trio samba no palco. O público francês, tradicionalmente acostumado a ter Dostoiévski na grade literária de sua formação escolar (como Machado de Assis ou Jorge Amado no Brasil), dá risada e entra na brincadeira.
Na montagem, Nastácia vê com clareza os jogos de poder que moldam suas relações: Míchkin, com sua bondade quase infantil, quer vê-la como vítima e, assim, reafirmar sua própria nobreza moral. Rogójin, por outro lado, a quer como posse, como troféu. Ambos falham. Nenhum deles vê a mulher diante de si.
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Ela sabe disso. E por isso ri. Ri dos homens que se matam por ela. Ri da piedade, do desejo, da moral. E depois cospe, queima tudo e parte. Seu percurso é de sabotagem consciente — uma rejeição radical do que lhe é oferecido como alternativa: ou a santa, ou a louca. Ela escolhe o caos.
O público não assiste, participa. Não é espectador, é espelho. “Com as mulheres [da plateia], é uma conversa no olhar — muito forte”, resume Pyramo. “O maior desafio — e também a beleza e a força que me trazem todas as noites ao palco — é o fato de encontrar tantas mulheres. Quando eu olho, é como se elas estivessem falando comigo, e eu entendo nitidamente que aquela sofreu ou ainda sofre abuso. E, infelizmente, são muitas”, diz.
“Que bom seria se a gente não precisasse mais falar disso… Mas, infelizmente, os números ainda são gigantes, alarmantes e assustadores — de vítimas de feminicídio”, sublinha a atriz.
Nastácia não é apenas uma personagem ressuscitada por uma dramaturgia contemporânea brasileira. É a incorporação de uma pergunta ainda sem resposta: o que acontece com as mulheres que recusam todos os papéis? Em O Idiota, ela morre. No palco de Avignon, ela queima como fogo de artifício, num gesto de exaltação — e nos incendeia.
O espetáculo brasileiro Nastácia fica em cartaz até 26 de julho no Théâtre de L’Adresse, na mostra paralela do Festival de Avignon.
* Para ver a entrevista completa com a atriz Flávia Pyramo, clique na imagem principal deste texto
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