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Em 100 fotografias, livro revela conexões globais da América Latina desde o período pré-colonial

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Um continente marcado por revoluções, trocas culturais e conexões globais ganha nova leitura no livro "História da América Latina em 100 fotografias", do historiador e jornalista Paulo Antonio Paranaguá, lançado neste mês de setembro pela editora Bazar do Tempo. A obra, construída como um mosaico de 100 fotografias, percorre desde o passado pré-colombiano até os dias atuais, revelando momentos decisivos e figuras emblemáticas que moldaram a região.

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O jornalista e historiador Paulo Antonio Paranaguá na sede da RFI.
O jornalista e historiador Paulo Antonio Paranaguá na sede da RFI. © RFI
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“As histórias se escreveram na América Latina a partir do século 19 para justificar os países independentes, com fronteiras muito aleatórias. Essas histórias estão voltadas para si mesmas e não tratam das relações na região, e às vezes não tratam sequer das relações entre esses países e o resto do mundo”, afirma o autor, ao explicar o ponto de partida de sua pesquisa. 

Paranaguá defende que a evolução da América Latina precisa ser contada como uma história conectada, que reconheça a relação triangular permanente com Europa, Estados Unidos e uma relação forçada com a África, além de uma conexão menos conhecida com a Ásia desde o período colonial. "É importante abordar a história da América Latina em termos de história comparada, de história global, de uma história conectada entre esses países e outras regiões do mundo", sublinha.   

A escolha das fotografias não seguiu uma cronologia tradicional. Paranaguá recorreu a registros dos descobrimentos arqueológicos do século 19 e início do século 20 para lembrar ao leitor que a história da região começou muito antes da invenção da fotografia. "Nossa história começou com os olmecas, os astecas, os incas, os guaranis", destaca. “Isso dá uma outra perspectiva histórica para o livro”, explica.

A curadoria das imagens foi um dos maiores desafios. “Enquadrar um período tão amplo em apenas 100 imagens foi terrível. Às vezes choro com tudo o que tive que deixar de fora”, confessa. Produtos como o café e o cacau estão presentes por sua importância econômica, cultural e social, mas o tabaco, por exemplo, ficou de fora – uma ausência que Paranaguá lamenta com humor: “Afinal de contas, eu adoro charutos”.

Capa do novo livro do jornalista Paulo Antonio Paranaguá editado pela Bazar do Tempo.
Capa do novo livro do jornalista Paulo Antonio Paranaguá editado pela Bazar do Tempo. © Divulgação

Entre guerras e diversidade

O livro não ignora os episódios dramáticos da história política e institucional da América Latina, como guerras e revoluções. Mas Paranaguá faz questão de destacar que a região é também marcada por uma diversidade cultural, social, étnica e religiosa espantosa. “A fotografia já é uma história cultural. Ela amplia o espectro. Não podemos tratar a evolução da região apenas com base em batalhas e golpes. É preciso ir mais longe”, defende.

Com textos curtos e linguagem acessível, o livro busca dialogar com um público amplo, especialmente os jovens. “Tenho uma formação acadêmica sólida, mas trabalhei a vida inteira como jornalista. Aprendi que me dirijo ao público em geral, não à panelinha de professores ou estudantes que querem ser cada um mais genial do que o outro. Isso não me interessa”, afirma.

Apesar da leveza na forma, o conteúdo é denso e revelador. “Os conhecedores da América Latina vão descobrir imagens que não conhecem, aspectos para os quais talvez não tenham dado a devida relevância”, garante. A motivação maior, segundo ele, é a transmissão de conhecimento às novas gerações. “Pensei nos meus sobrinhos, no meu filho... essa geração que não teve a ocasião de estudar a América Latina, que é a região do mundo na qual nós estamos inseridos. Nós fazemos parte dela.”

Cartões postais, cabeças reduzidas e a guerra das imagens

Ao mergulhar em arquivos e mercados de antiguidades, Paranaguá descobriu registros fotográficos que o surpreenderam, mesmo após mais de cinco décadas dedicadas ao estudo da América Latina. Uma das descobertas mais marcantes foi uma série de cartões postais produzidos pelas missões salesianas em 1937, em Lyon, com imagens da África, da Ásia e da América Latina.

“Achei imagens sobre o Mato Grosso e várias sobre o Equador. Algumas mostravam o trabalho dos missionários em saúde, ensino, construção de pontes. Outras revelavam aspectos da vida dos indígenas equatorianos, como a maloca e, curiosamente, as cabeças reduzidas dos chamados jívaros – que na verdade são os shuar”, conta.

Os shuar ficaram conhecidos por uma prática ritual que consistia em reduzir a cabeça de seus inimigos, como uma maneira de impedir que seus espíritos revidassem. A imagem das cabeças reduzidas, reproduzida no livro, revela mais do que um costume ancestral: expõe o olhar europeu sobre os povos originários. “Para o olhar europeu, é a prova de que os índios são bárbaros e precisam ser evangelizados. Isso faz parte de uma verdadeira guerra das imagens", aponta o autor. A colonização não foi só obra de soldados, mas também de evangelizadores e de uma produção simbólica que moldou a visão sobre os povos da América.

Fotógrafos identificados e invisibilizados

Das 100 imagens selecionadas, 30 são de autores não identificados. Entre os 70 fotógrafos conhecidos, 44 são latino-americanos, 14 europeus e 12 estadunidenses. A escolha não seguiu uma lógica de “olhar de dentro versus olhar de fora”, mas foi condicionada pela disponibilidade e conservação dos registros.

“Às vezes eu queria uma foto emblemática de um fotógrafo local e não conseguia. Por exemplo, sobre a intervenção na República Dominicana em 1965, não encontrei uma imagem de qualidade feita por um fotógrafo dominicano”, lamenta. Outro caso marcante foi uma fotografia sobre a redemocratização da década de 1980 na América do Sul. O jornal El País publicou a imagem de uma mulher de braços abertos enfrentando um jato d’água da repressão na frente da catedral de Assunção. “É uma fotografia em preto e branco maravilhosa, me apaixonei por ela, mas o autor perdeu o negativo. Não pude reproduzi-la com qualidade.”

A precariedade dos acervos em muitos países latino-americanos é um obstáculo recorrente. 

Um livro que pode incomodar

Ao tratar de temas sensíveis e controversos, Paulo Paranaguá reconhece que o livro pode desagradar alguns leitores. “Cada texto que acompanha as 100 fotografias fala de várias coisas. Em vez de fechar o foco, eu abro completamente. Não são cem assuntos, são mil”, diz.

Entre os temas que podem gerar polêmica está a Revolução Cubana. Paranaguá estima que a esquerda latino-americana ainda mantém uma relação sentimental com o que ocorreu na ilha. “Provavelmente vão me cobrar por ter sido severo com Cuba. Mas procurei ser equilibrado e lúcido com todas as revoluções que abordo: a mexicana, a boliviana de 1952, a cubana, a da Nicarágua em 1979.”

Na opinião de Paranaguá, é impossível tratar dessas revoluções sem reconhecer seus altos e baixos. “Quase todas tiveram um momento de apogeu e depois de decadência. Muitas traíram as esperanças e provocaram verdadeiros desastres. A revolução mexicana, por exemplo, abriu caminho para uma guerra civil terrível e uma guerra religiosa contra os católicos. E o caso cubano, quando a União Soviética caiu, o sistema ruiu.”

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