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ONU aos 80 anos: confiança abalada nas Nações Unidas é reflexo da crise do multilateralismo

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A Organização das Nações Unidas está completando 80 anos em 2025. Em um mundo marcado por crises crescentes, desigualdades e uma confiança abalada nas instituições globais, a organização lançou a iniciativa “ONU80”, a fim de otimizar operações e reafirmar a relevância da ONU em um cenário de rápida transformação. Para Felipe Loureiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, a ONU é “um reflexo mais evidente da atual crise do multilateralismo".

Le Conseil de sécurité de l'ONU réunit au siège des Nations unies à New York.
Reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova York, em 5 de agosto de 2025. © Eduardo Munoz / REUTERS
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Patrícia Moribe, da RFI em Paris

Felipe Loureiro aponta que a crise da ONU é multifatorial e complexa, mas elenca os elementos mais importantes que a minam. Para o historiador, o fator mais significativo é a maneira como os estados mais poderosos, econômica e militarmente, têm atuado no sistema internacional, "minando os princípios de segurança coletiva e as bases do multilateralismo".

Como exemplos, ele cita a intervenção unilateral dos EUA no Iraque em 2003, que "passou por cima do Conselho de Segurança"; a intervenção da OTAN na Líbia em 2011, que excedeu o mandato do Conselho de Segurança de criar uma "no-fly zone" e levou a uma mudança de regime e a agressão da Rússia contra a Ucrânia a partir de 2014 e em 2022, que violou "indiscutivelmente a Carta das Nações Unidas".

Essas ações, muitas vezes realizadas por países que são membros permanentes do Conselho de Segurança, "vão minando o respeito às regras, do respeito ao fundamento mais importante das Nações Unidas, que é o respeito à soberania e à integridade territorial dos seus membros".

Loureiro aponta ainda que a ascensão de lideranças de extrema direita em países também mina o escopo de atuação da ONU. “A falta de financiamentos e o sucateamento da estrutura também é um problema crítico”, com a "seca de recursos" de alguns dos principais financiadores, como os Estados Unidos.

Conselho de Segurança à prova em tempos turbulentos

Loureiro questiona a crescente irrelevância do Conselho de Segurança, afirmando que "cada vez menos faz sentido". Ele argumenta que nos conflitos da Ucrânia e em Gaza, "em ambos os casos, a gente tem, direta ou indiretamente, membros do Conselho de Segurança atuando" em violação à Carta da ONU ou apoiando terceiros que o fazem.

Isso resulta no bloqueio de "quaisquer ações significativas por parte do Conselho de Segurança", tornando-o inoperante. Além disso, o Conselho tem demonstrado "pouca atenção" a guerras e crises no Sul Global, como a guerra civil no Sudão, onde embargos de armas são "deliberadamente desrespeitados" sem consequências. Essa dinâmica, para Loureiro, "coloca em xeque toda a discussão sobre para que serve o Conselho de Segurança" e a legitimidade dessa estrutura.

Apesar de tudo, ONU continua indispensável

Apesar de suas críticas, o professor Loureiro é enfático ao declarar que "o mundo certamente estaria muito pior sem as Nações Unidas". Ele ressalta o papel "muito relevante" da organização em missões de paz, ajuda humanitária (como programas de alimentos do Programa Mundial de Alimentos) e na defesa dos direitos humanos, mitigando os efeitos humanitários de crises.

Para superar os desafios, Loureiro aponta dois caminhos essenciais. Ele defende um maior papel para o protagonismo de "coalizões diversas de países" como BRICS, G77 e G20 que, embora não universais como a ONU, podem "contribuir para mitigar" desafios e "diminuir essa paralisia".

O historiador acredita ainda que é possível "resistir a esse processo de enfraquecimento" do multilateralismo dentro da própria ONU, com instituições como a Assembleia Geral buscando, com seus limites, "dar vida a esse multilateralismo".

Memória e reconhecimento: mulheres e diplomatas brasileiros

Loureiro também destaca a importância de "resgatar essas histórias de atores e de atrizes, principalmente do sul global, que ajudaram a construir as Nações Unidas e que muitas vezes são invisibilizadas". Ele enfatiza o papel crucial de mulheres sul-americanas no início da ONU, mencionando especificamente a diplomata brasileira Berta Lutz, que lutou para "garantir que na Carta das Nações Unidas houvesse uma discussão sobre direito das mulheres". Esse feito, segundo ele, é "muito pouco discutido".

Outro nome incontornável da diplomacia brasileira na ONU é Sérgio Vieira de Mello, que Loureiro descreve como "um dos grandes ícones no direito humanitário". O brasileiro alcançou o posto de Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU e faleceu tragicamente em um ataque no Iraque, onde atuava como enviado especial. Seu legado é mantido vivo através das "Cátedras Sérgio Vieira de Mello" em universidades brasileiras, que trabalham com refugiados, explica o historiador.

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