Descontentamento social na Argentina cresce, mas Milei mantém apoio popular
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O número de setores sociais afetados pelo ajuste fiscal do governo aumenta, mas o apoio ao presidente Javier Milei não diminui. Apesar de a maioria dos argentinos consumir menos e metade ter dificuldades para chegar ao fim do mês, os governistas devem vencer as próximas eleições legislativas de outubro, segundo analistas políticos.

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires
Todas as quartas-feiras, aposentados ocupam a frente do Congresso em Buenos Aires para protestar contra as políticas de Milei. A cada semana, um novo setor se une à categoria, uma das mais atingidas pelo ajuste fiscal do presidente argentino.
Há dez dias, Milei vetou um aumento nas aposentadorias aprovado pelo Congresso, além de uma atualização no valor das prestações médicas destinadas a pessoas com deficiência. O Congresso também deve votar em breve leis de financiamento para universidades e hospitais pediátricos, que afetarão médicos e o ensino universitário.
O presidente afirma que não há recursos para ajudar esses setores vulneráveis e que a política de superávit fiscal é uma das bases de seu governo.
No entanto, o superávit fiscal de Milei é considerado fictício por economistas. Isso porque, entre outros fatores, as obras públicas no país estão paralisadas há quase dois anos.
Além disso, o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) lembrou que, ao se considerar os juros da dívida, o superávit fiscal primário de 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) se transforma em um déficit fiscal de 1,2%.
De todo modo, o que se torna cada vez mais evidente nas pesquisas de opinião pública são os setores sociais que relatam dificuldades para chegar ao fim do mês.
Aperto econômico e perda de poder aquisitivo
Desde dezembro de 2023, quando Javier Milei assumiu a presidência, a perda média do poder aquisitivo na Argentina foi de cerca de 12%. Trabalhadores do setor público e do setor informal sofreram perdas ainda maiores. Já os assalariados do setor privado têm conseguido reajustes salariais baseados na inflação.
As perdas no poder de compra muitas vezes passam despercebidas, pois ocorrem por meio do aumento das tarifas de serviços públicos ou pela eliminação de benefícios. Os aposentados, por exemplo, agora precisam comprar os medicamentos que antes recebiam gratuitamente.
Uma pesquisa nacional da consultoria M&F concluiu que 83,9% dos argentinos tiveram de mudar seus hábitos de consumo devido à perda de poder aquisitivo.
Entre os cortes, destaca-se a redução nos gastos com produtos essenciais. Os consumidores abandonaram marcas tradicionais em favor de produtos de segunda linha ou alternativos. Também trocaram serviços privados por públicos, como escolas e planos de saúde, e reduziram o uso de transporte.
Quase metade dos entrevistados (49,5%) afirma ter dificuldades financeiras. Apenas 35,3% dizem conseguir pagar todas as contas sem restrições.
No total, 60% consideram que a situação econômica familiar piorou no último ano, enquanto apenas 17,3% acreditam que ela melhorou.
Segundo dados da consultoria Moiguer, metade dos argentinos (50%) tem dificuldade para encerrar o mês com o que ganham. Apenas 23% conseguem economizar algum dinheiro.
O peso argentino está artificialmente valorizado. Nos últimos 20 meses, a inflação aumentou muito mais do que a desvalorização da moeda. Com isso, o custo de vida na Argentina é um dos mais altos do mundo, e o país perde competitividade perante produtos importados.
Todas as semanas, uma nova fábrica fecha no país. O número de empregos destruídos é maior do que o de criados. A venda de ativos também supera os investimentos privados.
Desemprego e precarização
O desemprego chegou a 7,9% no primeiro trimestre. O número é apenas 0,2 ponto percentual superior ao mesmo período do ano passado, mas representa um aumento de 1,5 ponto em relação ao trimestre anterior.
Essa taxa, no entanto, não reflete a realidade, já que o número de trabalhadores autônomos e precários aumentou. Quem perde o emprego e passa a prestar serviços por conta própria em plataformas digitais não aparece como desempregado nas estatísticas.
Além disso, 16% dos empregados procuram um segundo trabalho para complementar a renda e conseguir chegar ao fim do mês.
Plano econômico depende das urnas
O governo Milei depende de um excelente desempenho nas eleições legislativas para sinalizar governabilidade aos mercados e avançar com reformas. Sem isso, seu plano econômico corre sérios riscos, pois depende de investimentos privados, que ainda não chegaram.
Todos os institutos de opinião pública preveem a vitória de Milei, com estimativas em torno de 40% dos votos.
Será a partir dessas eleições que começará uma nova fase do governo Milei, na segunda metade de seu mandato de quatro anos.
Riscos eleitorais
O principal risco para Milei é que sua principal bandeira, o combate à inflação, sofra um revés. Em 2024, a inflação deve ficar em torno de 27,3%, segundo pesquisa do Banco Central com as principais consultorias econômicas.
Embora seja uma queda significativa em relação aos 117,8% registrados no ano anterior, ainda é um índice muito alto para quem prometeu acabar com a inflação até o ano que vem.
O analista Gustavo Marangoni chama a atenção para a alta taxa de abstenção dos eleitores nas eleições regionais. “Eu prestaria atenção na baixa participação eleitoral. O cansaço social com um governo que está há pouco tempo no poder deveria ser preocupante, porque é nesse ponto que pode surgir a construção de uma oposição a Milei”, observa.
O analista Cristian Buttié também alerta para o risco de baixa participação eleitoral, que pode sinalizar uma decepção com o governo. “O desencanto com Milei não se manifesta em apoio à oposição, mas sim em apatia. Os eleitores decepcionados preferem se abster de votar”, recorda.
Já para Jorge Giacobbe, o risco é que a esperança depositada em Milei se transforme em ansiedade. “O risco virá depois das eleições, a partir do ano que vem. São os anos em que a esperança pode se transformar em ansiedade. Onde está o limite da dor tolerável de cada argentino? Pessoas que davam nota dez ao governo Milei agora dão oito ou sete”, compara.
Em outras palavras, até mesmo os eleitores de Milei começam a sentir o desgaste provocado pelo sofrimento social.
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