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Candidato inesperado surpreende na Bolívia e corre com vantagem num inédito segundo turno

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Pela primeira vez na história, as eleições na Bolívia terão um segundo turno. E, também de forma inédita em duas décadas, o partido de esquerda Movimento Ao Socialismo (MAS), anteriormente liderado por Evo Morales, ficou de fora da disputa presidencial e não terá representantes no Congresso – um marco no cenário político boliviano. Quem surpreendeu foi o azarão Rodrigo Paz Pereira, não detectado pelas pesquisas eleitorais e agora favorito para o segundo turno.

O candidato de centro-direita, Rodrigo Paz Pereira, o mais votado no primeiro turno das eleições presidenciais na Bolívia, comemora resultado com apoiadores, em 17 de agosto de 2025.
O candidato de centro-direita, Rodrigo Paz Pereira, o mais votado no primeiro turno das eleições presidenciais na Bolívia, comemora resultado com apoiadores, em 17 de agosto de 2025. © Freddy Barragan / AP
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Se antes as pesquisas de intenção de voto apontavam para uma disputa em um inédito segundo turno entre a direita e a centro-direita, o resultado das urnas indica uma disputa entre a direita e o centro. Alguns analistas colocam esse embate até entre a direita e a centro-esquerda.

“Estamos diante de um novo cenário político na Bolívia. Não apenas acabou a hegemonia do MAS, mas também vemos que os elementos clássicos de uma polarização têm agora menor peso. Isso faz com que este segundo turno, inédito na história do país, seja também inédito por não haver um choque entre duas visões ideológicas antagônicas, como aconteceu ao longo dos últimos 20 anos. O que parece estar em jogo é o que trouxe Paz Pereira até aqui: o desejo de boa parte dos eleitores por uma renovação na política”, aponta o analista político Gustavo Pedraza.

“A origem desse resultado surpreendente está na vontade do povo boliviano de uma renovação”, sublinha.

O grande e inesperado protagonista da jornada foi Rodrigo Paz Pereira, um candidato do centro político que já militou na centro-esquerda da social-democracia. Aliás, o pai de Rodrigo, o ex-presidente Jaime Paz Zamora (1989–1993), fundou o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), inscrito na Internacional Socialista, e organizou a resistência ao regime militar do ex-general Hugo Banzer (1971–1978).

Rodrigo Paz Pereira foi o mais votado, para surpresa geral da nação, inclusive dele próprio. As pesquisas indicavam menos de 10% das intenções de voto.

Os especialistas indicam que o crescimento de Rodrigo Paz Pereira aconteceu graças às dificuldades que as pesquisas têm para medir o voto rural e indígena, e também aos indecisos que deixaram para decidir na última semana e escolheram uma renovação.

“É uma grande surpresa. Por mais que se percebesse um crescimento da candidatura de Rodrigo Paz, ninguém podia imaginar esse nível em apenas dez dias. Há dois meses, ele tinha 4%. Na última medição, 8%. Até ele mesmo deve ter ficado surpreso”, acredita o analista político Luis Fernando Castedo, ex-porta-voz do Tribunal Eleitoral.

Outra explicação é que os eleitores abandonaram a esquerda, mas não queriam uma opção rupturista. Paz Pereira é visto como um moderado que não busca vingança contra o passado, mas sim a união nacional.

“Boa parte dos que votaram em Rodrigo Paz são eleitores órfãos que antes votavam no MAS. Optaram agora por um candidato diferente, com traços de ‘outsider’ da política. Uma renovação que possa ser uma ponte. Identificaram nele a vontade de conciliação, de pacificar o país. Então, os indecisos (15%) inclinaram essa balança”, avalia Gustavo Pedraza.

Evo Morales é o grande perdedor

O grande derrotado foi o partido Movimento ao Socialismo, antes liderado pelo ex-presidente Evo Morales. O partido ficou com 3,1% dos votos, pouco acima dos 3% necessários para manter o registro.

O outro grande derrotado foi o próprio ex-presidente Evo Morales. Inelegível, Morales promoveu o voto nulo, que acabou em quarto lugar com 19,3% dos votos, quando historicamente ficava com 14 ou 15%. Ou seja, Morales hoje tem pouca representação na sociedade boliviana.

“Quando Morales passou a promover o voto nulo, as pesquisas já indicavam que essa seria a opção de 10% do eleitorado. Foi mero oportunismo eleitoral”, recorda o economista e analista político Carlos Toranzo.

O segundo turno está marcado para o dia 19 de outubro. Serão dois meses de alianças e estratégias numa corrida na qual agora o candidato Rodrigo Paz Pereira parte com vantagem.

Reflexos no Congresso

Com 95,4% das atas de votação contabilizadas, os números preliminares divulgados pelo Tribunal Supremo Eleitoral dão ao Partido Democrata Cristão, de Rodrigo Paz Pereira, 32,1% dos votos válidos. A Aliança Livre, de Jorge “Tuto” Quiroga, ficou em segundo lugar, com 26,8%. O empresário da centro-direita, Samuel Doria Medina, antes apontado para disputar o segundo turno, ficou em terceiro lugar com quase 19,9%.

Esse pódio teve reflexo no Congresso. Dos 130 deputados, Paz Pereira ficará com 25; Tuto Quiroga, com 20; e Doria Medina, com 12. Essas três forças, com uma visão liberal da economia, ficam muito próximas da maioria da Câmara dos Deputados.

O Movimento ao Socialismo (MAS) não obteve nenhum deputado, quando antes tinha maioria absoluta.

No Senado, dos 36 senadores, Paz Pereira terá 15; Tuto Quiroga, 12; Doria Medina, 8. Também ficam muito perto de conseguir a maioria. O MAS não elegeu nenhum senador, quando antes tinha hegemonia.

“Para governar, o eleito terá de unir essas três forças por meio do diálogo e de acordos. Ao longo dos últimos 20 anos, o que a Bolívia viu foi um Parlamento dominado em dois terços pelo MAS, aprovando qualquer iniciativa do Executivo. Vem agora um tempo de negociação, em vez de imposição. Mas essas forças têm em comum o objetivo de abrir totalmente a economia ao mercado internacional, de abandonar uma postura antiempresarial. Estamos diante de uma mudança de ciclos econômico e político”, interpreta Carlos Toranzo.

“O grande perdedor deste processo é o MAS. Não haverá presença do socialismo no Congresso. Surgem três forças que terão de trabalhar de maneira unida”, concorda Luis Fernando Castedo.

Alianças e estratégias

Nos discursos na noite deste domingo (17), vitoriosos e derrotados começaram a revelar suas estratégias para o segundo turno.

O primeiro a discursar foi o inesperadamente derrotado Samuel Doria Medina. Sem rodeios, anunciou que vai apoiar, no segundo turno, o candidato vencedor Rodrigo Paz Pereira.

Esse apoio faz sentido: Doria Medina era um candidato da social-democracia, e Paz Pereira é do centro. Doria Medina já fez parte do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), fundado pelo pai de Paz Pereira.

Se todos os votos fossem automaticamente transferidos – algo incomum –, Paz Pereira já começaria a disputa com 42% dos votos. Também é provável que a maioria dos votos de esquerda de Andrónico Rodríguez, em quarto lugar com 8,2%, migre para Paz Pereira.

O segundo candidato a discursar foi Jorge Quiroga. Com tom conservador, focado na pátria, na família e na religião, destacou que “acabou a longa noite de duas décadas do Movimento ao Socialismo”. Por isso, o foco agora é na “unificação nacional”.

Com isso, Tuto Quiroga adotou a estratégia do vencedor Paz Pereira, que até agora vinha pregando a união nacional sem revanchismo contra os seguidores do Movimento ao Socialismo, de Evo Morales.

“Tuto Quiroga começou a se mover para o centro, ciente de que já garantiu o voto da direita”, analisa Gustavo Pedraza.

Rodrigo Paz Pereira parte com a vantagem de ter vencido, de ter mais representantes no Congresso e de vir embalado na disputa, com mais chances de somar os votos do centro e da esquerda.

O candidato também fez um discurso no qual exaltou valores como a pátria e a religião, mas, em vez da família, apontou para “o povo”, colocando-se em uma posição mais popular. Afirmou que quer uma “democracia liberal”, mas defendeu a construção de uma reconciliação nacional.

“A vitória de Rodrigo surpreende, mas não deveria surpreender, porque ele não representa o grande empresário vitorioso, encarnado na figura de Samuel Doria Medina. Não representa o liberal aguerrido, encarnado em Tuto Quiroga. Rodrigo Paz Pereira representa o cidadão comum. Ele não entrou nos grandes discursos de polarização, adotando uma posição de centro como a maioria dos cidadãos, distanciando-se dos políticos tradicionais”, observa o sociólogo Renzo Abruzzese.

Agenda 50/50

O plano de Paz Pereira é a chamada Agenda 50/50, uma descentralização da riqueza do país, atualmente concentrada em 85% nas mãos do Estado nacional. Propõe uma divisão dos recursos com os poderes regionais e com as universidades públicas.

Outro diferencial do finalista é o seu discurso firme contra a corrupção. Seu candidato a vice é o ex-policial Edman Lara, muito popular e considerado um “outsider” da política. Conhecido como “Capitão Lara”, ele ganhou notoriedade ao denunciar casos de corrupção dentro da corporação policial. Especialistas afirmam que sua presença na chapa ajudou a atrair votos.

Quem é quem no segundo turno

O azarão Rodrigo Paz Pereira, de 57 anos, nasceu em Santiago de Compostela, na Espanha, em 1967, enquanto seu pai estava exilado devido à ditadura na Bolívia, que durou até 1982. É filho da espanhola Carmen Pereira e do ex-presidente boliviano Jaime Paz Zamora.

Economista com formação em Relações Internacionais, Paz Pereira iniciou sua trajetória política há 23 anos. Já foi vereador, deputado, prefeito de Tarija (no sul do país) e atualmente é senador. Esta é a primeira vez que concorre à Presidência.

Do outro lado está Jorge Quiroga, de 65 anos, que foi presidente interino da Bolívia por um ano, entre agosto de 2001 e agosto de 2002, após a renúncia de Hugo Banzer.

Banzer, eleito em 1997, escolheu o jovem Jorge Quiroga, então com 37 anos, como seu vice-presidente. Antes de retornar ao poder pelas urnas, Banzer havia sido ditador – justamente durante o regime que forçou o exílio do pai de Paz Pereira.

Engenheiro e administrador de empresas, Tuto Quiroga iniciou sua carreira política como vice-secretário e depois ministro de Jaime Paz Zamora, pai de Rodrigo. Agora, disputa a Presidência contra o filho de seu antigo aliado, em sua quarta tentativa.

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