Ao redor do mundo, a extrema direita transformou a transgressão em combustível político. A esquerda, que já foi sinônimo de contestação, parece ter esquecido como quebrar regras, e paga o preço por isso.
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Thomás Zicman de Barros, analista político
A rebeldia virou de direita? Essa é a pergunta e o título do livro do jornalista e historiador argentino Pablo Stefanoni, radicado em Paris.
Traduzido para o português pela Editora da Unicamp, o livro já tem alguns anos. Hoje, a pergunta soa menos como um enigma e mais como um diagnóstico precoce.
Stefanoni estudou Javier Milei muito antes de ele se lançar candidato à presidência argentina, quando ainda era um bufão de programas de auditório convertido em deputado. E fez isso num momento em que, após a vitória de Biden contra Trump, muitos se deixaram levar por um otimismo enganoso: acreditavam que a “onda de extrema direita” havia sido contida e que a história voltaria a seu fluxo “normal”.
Stefanoni escapou dessa miopia porque percebeu o surgimento de uma estética política que desafiava não só as instituições, mas também quem, por séculos, detinha o monopólio da contestação: a esquerda.
A esquerda, historicamente, foi a força que ousava romper convenções, questionar hierarquias e expor as formas invisíveis de dominação. Era a esquerda quem quebrava tabus, desafiava a moralidade (e o moralismo) para expor a nu as injustiças.
Nos anos 1960, a turma do Pasquim cunhou a expressão “esquerda festiva”, combinando boemia e política. Nas últimas décadas, no entanto, esse ímpeto transgressor foi se perdendo. A esquerda se tornou conservadora, quiçá “careta”: ao invés de questionar as regras, passou a multiplicar códigos de como se portar, de como falar e, com isso, perdeu o seu vigor.
Em 2014, um famoso colunista brasileiro defendia a necessidade de uma “direita festiva”. Sem saber, estava traçando um programa para a década seguinte, de tamanha força que foi muito além dos desejos do próprio autor.
A transgressão, o ato de quebrar regras, falar o proibido, ridicularizar o que é tido como sagrado, tem um apelo visceral. A psicanálise ajuda a entender por quê: todos somos atravessados por faltas, angústias e frustrações. É comum projetar nelas a sensação de que existem regras sociais nos controlando.
Na transgressão existe uma promessa de gozo. É o triunfo da vontade do homem branco viril: a fantasia de poder fazer o que quiser, quando quiser, sem limites. E os incomodados que se mudem, para Cuba, de preferência! Essa promessa é sedutora, e o crescimento do discurso masculinista também bebe dessa fonte, sobretudo quando aparece embrulhada em discursos que se apresentam como “corajosos” e “politicamente incorretos”.
Mas não se deve esquecer: a transgressão de extrema direita não emancipa ninguém. Muitos de seus militantes acreditam – com certa razão – que, por décadas, suas ideias foram tabu e suas vozes informalmente silenciadas.
Antigas formas de dominação
É inegável que as mudanças sociais e midiáticas recentes deram espaço a quem estava na periferia do debate. Mas para quem, exatamente? Não estamos falando aqui de discursos emancipatórios, democráticos, que questionam hierarquias sociais para ampliar direitos. O discurso transgressivo da extrema direita não abre espaço para novas liberdades, mas apenas reforça antigas formas de dominação. A quebra de tabus, nesse caso, serve para justificar a violência contra minorias, corroer direitos e aprofundar desigualdades.
Sim, essa rebeldia tem limites. Às vezes a extrema direita dá passos maiores do que as pernas. A tomada do Capitólio em Washington, assim como o ataque à Praça dos Três Poderes em Brasília, foram tão transgressivos e violentos que afastaram mais gente do que atraíram. Por isso, alguns conservadores falam na necessidade de uma paradoxal extrema direita “moderada”, na necessidade de “normalização”, como seria o caso de Giorgia Meloni, líder neofascista italiana que hoje se apresenta como gestora responsável.
Mas é preciso lembrar que normalização não é só a extrema direita parecer mais palatável: é também o centro se deslocar para a extrema direita, alterando o nosso referencial do que é “normal”. É o que vemos quando a direita espanhola incorpora o discurso do Vox, quando os gaullistas franceses ecoam ideias de Marine Le Pen, ou quando partidos como o trabalhista britânico e os social-democratas dinamarqueses endurecem suas posições migratórias para competir com seus adversários à extrema direita.
Se esses outros partidos rumam à extrema direita é porque a sua força original não está na normalização, mas na transgressão. É isso que lhe garante energia e atração populista, sobretudo num contexto em que cada vez mais gente se vê precarizada.
A precarização não é só econômica: ela é simbólica. A crise das formas tradicionais de vida social, como os sindicatos, e o triunfo de uma cultura individualista furtam dos cidadãos instrumentos simbólicos para a ação coletiva.
Em outras palavras, deixam muita gente sem voz. Nessas circunstâncias, os discursos e performances transgressivas da extrema direita encontram eco no desejo de muitas pessoas por mudança e, sobretudo, por reconhecimento. Exatamente por isso, adotar uma postura defensiva e bem-comportada não basta para enfrentar a realidade.
É preciso recuperar a dimensão transgressora, ousada, “ofensiva”, “festiva”, que um dia foi bandeira da esquerda: aquela que desafia a ordem não para oprimir, mas para ampliar a liberdade, a igualdade e a dignidade de todos.
A pergunta de Stefanoni continua em aberto: se a rebeldia mudou de lado, a esquerda vai ter coragem de reconquistá-la?
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