RFI Convida

Teatro: Cia Dos à Deux celebra 25 anos de Avignon com a premiada "Enquanto você voava, eu criava raízes"

Publicado em:

Depois de arrebatarem uma série de prêmios no Brasil com o espetáculo "Enquanto você voava, eu criava raízes", a dupla de encenadores, atores e cenógrafos Artur Luanda Ribeiro e André Curti desembarcou no Festival de Avignon, onde cumpre temporada de sucesso no teatro La Manufacture. De retorno à cidadela medieval de Avignon, no sul da França, 25 anos após terem estourado nessa grande vitrine mundial das artes cênicas, o duo espera repetir em terras francesas o sucesso conquistado no Brasil.

Os atores e encenadores Artur Luanda Ribeiro e André Curti, co-fundadores há 25 anos da Cia Dos à Deux, durante entrevista à RFI no Festival de Avignon, no sul da França.
Os atores e encenadores Artur Luanda Ribeiro e André Curti, co-fundadores há 25 anos da Cia Dos à Deux, durante entrevista à RFI no Festival de Avignon, no sul da França. © RFI/Cyrill Etienne
Publicidade

RFI: Gostaria de começar falando um pouco desse conceito de teatro gestual, porque a gente está falando de dramaturgias do corpo, ou seja, o corpo como principal mídia dessa criação. 

Artur Luanda Ribeiro: Nesses 25 anos de trajetória, acho que quando iniciamos essa pesquisa, tínhamos o ator como centro principal da dramaturgia do corpo, e, a partir desse corpo, criávamos as dramaturgias. Essas obras que são visuais têm o corpo como verbo, mas todas as matérias, a luz, cenografia, objetos, tudo passa por um funil para chegar nesse corpo, nesse ator que vai atuar com essas matérias-primas. Então, nessas narrativas visuais, todos esses elementos são também contadores de histórias.

Somos, na verdade, apenas mais uma peça dentro desse xadrez, e não os personagens principais disso tudo. Desde o primeiro espetáculo, quando nos inspiramos em "Esperando Godot", de [Samuel] Beckett, a única obra que adaptamos em todo esse tempo, depois foram sempre dramaturgias que escrevemos. Tivemos caminhos muito diversos nas criações. "Enquanto você voava, eu criava raízes" tem uma dramaturgia muito mais performática, larga mão da dramaturgia narrativa, onde a gente se estabeleceu na França. De uma certa forma, éramos referência nisso porque criávamos obras totalmente narrativas sem palavras. Com esse espetáculo novo, a gente rompe isso tudo. A gente não está mais contando uma história de uma pessoa, nem de pessoas. Estamos falando de algo que é muito mais metafísico. Eu acho que estamos falando mais dos duplos que temos dentro da gente. Aquele momento em que há um descolamento nosso entre o inconsciente e o consciente que nos projeta em uma jornada interior, metafísica, à procura desse algo que se perdeu. Tem um abismo materializado, um portal.

RFI: O título da peça pressupõe uma oposição ou uma contraposição nesse jogo teatral...

André Curti: É engraçado porque o título apareceu antes, como um poema, e que nos guiou durante a construção do trabalho. Acho que falamos da oposição, mas também do duplo, e da busca pelo seu próprio eu, do seu inconsciente. Tudo surgiu de uma maneira mais narrativa e a gente foi se distanciando disso. Por isso, esse trabalho acabou se tornando uma grande metáfora.

RFI: Nesse caminho que sai da palavra e vai se corporalizar, vai se incorporar na cena, nessa poética toda, vocês falam sempre de uma palavra-flecha, que orienta o trabalho. Qual foi a palavra-flecha dessa criação e como vocês trabalharam isso? 

André Curti: Nessa obra, a nossa palavra-flecha foi o medo. Eu acho que também se a gente pega o momento em que a gente criou esse espetáculo, a gente estava vivendo um momento de grande medo, que foi a pandemia, e para a gente ainda foi mais doloroso porque a gente estava vindo de uma censura [durante a Era Bolsonaro] com o espetáculo precedente.

Então, na verdade, a gente ficou dois anos trancados, no nosso espaço no Rio de Janeiro. Com esse protótipo do cenário montado. E com esse título, com esse poema. Eu acho que foi importante essa palavra-chave para a gente chegar em algumas coisas da dramaturgia, mas eu acho também que, na verdade, a gente foi muito além. Eu diria que nesse espetáculo a palavra-chave foi se transformando em amor. Do medo para o amor.

RFI: E para falar de medo é preciso romper com a palavra, com o verbo?

Artur Luanda Ribeiro: Eu acho que esse verbo se transformou na coragem de criar asas para poder mergulhar no abismo, porque só criando asas você pode sobrevoar o abismo e sair dele. Essa coragem de afrontar o medo. Eu acho que a gente começou com isso e foi rompendo, e o espetáculo foi se apresentando. E, de uma certa forma, nos assombrando por aquilo que a gente estava se propondo a fazer no palco, que era novo para nós, não tinha dramaturgia, não tinha personagem. Tudo isso num espaço mínimo. Tinha muitas restrições, somos criadores de restrições. Nesse espetáculo, a gente foi se colocando várias restrições.

RFI: Mas tem a música que entra para dar uma costurada nessa tessitura...

Artur Luanda Ribeiro: A música chegou no final, então o espetáculo estava pronto, ela nem chegou para cumprir o papel de alguma coisa que estava meio frouxa. Espetáculo estava inteiramente ali e o Federico Puppi, um compositor italiano que mora no Brasil há 10 anos, chegou propondo com uma cumplicidade enorme. Foi a cereja do bolo. Ele, na verdade, uniu e deu ritmo àquilo que a gente estava ensaiando sem música. Porque a nossa musicalidade nossa, ela vem do corpo; trabalhamos muito para que a música não seja um condutor, uma bengala. A gente procura que os movimentos surjam do nosso corpo e essa musicalidade seja nova, tentamos ir por caminhos desconhecidos para sair das zonas de conforto.

Os atores, encenadores e cenógrafos da Cia Dos à Deux se apresentam no Festival de Avignon até o dia 24 de julho de 2023.
Os atores, encenadores e cenógrafos da Cia Dos à Deux se apresentam no Festival de Avignon até o dia 24 de julho de 2023. © Renato Mangolin

RFI: E esse novo trampolim, essa passarela que vocês estão criando pro futuro possível da companhia, conversou muito com o Brasil. Vocês ganharam uma série de prêmios, inclusive o prêmio de melhor espetáculo do ano da associação dos produtores teatrais (APTR). Como foi conversar com o Brasil, sem o verbo como diretiva?

Artur Luanda Ribeiro: Um dos motivos que não queríamos uma dramaturgia narrativa é que o momento em que vivíamos era tão singular, que a gente não tinha legitimidade para contar a história de uma pessoa, como dramaturgos. Não me interessava falar de uma Maria, de um José, ou de um texto; estávamos muito fragmentados e uma coisa que era muito importante era saber que tempo esse espetáculo teria. Em que tempo queremos que esse espectador entre? É um sonho, é um pesadelo, é sensorial...

Então, para nós, é um convite a um renascimento de espectador que volta para o teatro, queríamos não só criar sensações, mas que fosse um momento muito espetacular internamente para o público. Um momento de sair da realidade, por isso a importância desse conceito da metafísica para nós, nesse espetáculo. 

"Enquanto você voava, eu criava raízes"
Teatro brasileiro no Festival de Avignon

"Pendant que je volais, tu créais des racines" ["Enquanto você voava, eu criava raízes", no original em português]

CIA Dos à Deux no FESTIVAL DE AVIGNON

Datas: de 7 a 24 de julho de 2023

Local: Patinoire do Teatro La Manufacture, em Avignon.

Horário: de 21h40 a 23h25

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios