"Há sempre razão para se indignar": Tiago Rodrigues comenta sua 1ª direção do Festival de Avignon
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Inaugurando um estilo próprio que encontra seu equilíbrio entre a tradição e a ousadia, o diretor português Tiago Rodrigues se impõe com sucesso à frente desta que é sua primeira edição do Festival de Avignon. Atento para as criações periféricas e os corpos dissidentes, ele expande uma das principais vitrines do teatro mundial para acolher nomes até então desconhecidos da cena francesa. Rodrigues recebeu a RFI Brasil nos jardins da sede do Festival de Avignon, no sul da França.
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Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Avignon
RFI: Andando por Avignon, a gente tromba em séculos de história, é a história de uma cidade, de um país, de um mundo, mas também a história de um teatro, de um fazer teatral. Chegamos à 77ª edição do festival de Avignon, a sua primeira edição à frente do festival. Como foi se reapropriar dessa história?
Tiago Rodrigues: Julgo que o primeiro desafio é ser capaz de conhecer a história, aceitar que ela é complexa. A história de um festival, assim como a história, por exemplo, deste país ou deste continente tem coisas magníficas, mas é marcada também pela injustiça, por uma grande complexidade. Conhecer a história é aceitar essa complexidade e dialogar com ela. E eu acho que num festival como Avignon, temos uma espécie de prova viva de que a relação com a memória - mas uma relação que aceita seus problemas do passado - é uma relação frutuosa para o presente e o futuro.
É pensar, por exemplo, que nesta edição temos uma maioria de mulheres co-dirige ou que dirige espetáculos na programação. É também uma resposta, eu julgo que feliz, ao conhecimento da memória deste festival, um dos mais importantes do mundo, mas que a imagem do mundo em ele que existia não defendia a paridade, não dava espaços suficientes para mulheres em lugares de direção artística. O resultado de conhecer a memória nos permite avançar. E, claro, é preciso conseguir tratar o patrimônio não como um peso, algo que nos pesa, mas como uma fonte de inspiração. Mesmo com todas as dificuldades e problemas, para atacarmos com um sorriso os problemas do presente e do futuro e, sobretudo, produzirmos, inventarmos, criarmos porque se trata de um festival de criação e o essencial é, em primeiro lugar, estar ao lado dos artistas quando há ideias para criar esses espetáculos e depois criar as condições para que o maior número de pessoas, mas também o público mais diverso, tenham acesso democrático a essa criação.
RFI: Na abertura do festival com o espetáculo "Welfare", na Cour d’Honneur do Palácio dos Papas, com a diretora Julie Deliquet, vocês fizeram um minuto de silêncio pela morte de Nahel, adolescente assassinado pela polícia na França. Como o real dialoga com teatro em2023?
Tiago Rodrigues: O real dialoga com o teatro e, sobretudo, o teatro dialoga com o real. Às vezes de uma forma explícita, outras vezes, de uma forma implícita, mas, inevitavelmente, a natureza do teatro, da dança, de aquilo que na França se chama as arts vivants, as artes do palco, da cena, é uma assembleia humana real. As pessoas que partilham aquele espaço conosco vêm da rua, como nós viemos da rua. Inevitavelmente, quando há grandes fenômenos sociais, é como se tivéssemos lentes nos olhos, nos sentidos, no cérebro para ler aquilo que nos é proposto. Fazer o "Welfare", hoje, essa adaptação de um fantástico filme do [documentarista norte-americano] Frederick Weisman, que estava também presente na estreia na plateia e que acompanha o festival durante alguns dias, adaptar essa história filmada há 50 anos em Nova Iorque, contando um dia na vida de várias personagens que habitam um centro de ajuda social. Uma história que permanece atual não apenas pela forma como foi captada pela Julie Deliquet, que a adaptou ao teatro, mas permanece atual porque no mundo aquelas questões permanecem atuais no nosso mundo de 2023, que está ali presente. Eu acho que esse diálogo se opera no nível da construção artística do real, mas se opera sobretudo no olhar do público.
RFI: O real atualiza o teatro?
Tiago Rodrigues: Sim, porque, por exemplo, "Antígona", de Sófocles, como faz [o diretor suíço] Milo Rau, aliás a partir de uma reconstituição de um massacre no Pará, no Brasil, com o movimento dos sem-terra e em terras dos povos indígenas. Quando ele apresenta este espetáculo, ele faz essa ponte com uma certa atualidade do nosso tempo. Mas mesmo que ele fizesse a versão mais clássica de Antígona, quando Antígona diz “não” [a seu tio Creonte, rei de Tebas, no contexto da tragédia grega], esse “não” significa coisas diferentes em tempos diferentes. Há sempre um “não”, há sempre uma Antígona nos nossos tempos, há sempre uma razão para nos indignarmos, nos rebelarmos. Isso prova que uma peça com 25 séculos, no momento em que é colocada no palco, ela vai falar de hoje.
RFI: O teatro continua tendo essa função civilizatória, de ágora no meio da pólis, da política?
Tiago Rodrigues: Julgo que o teatro é essa assembleia humana onde nos reunimos para misturar prazer e pensar o mundo. Pensar o mundo com prazer, porque é um jogo, o teatro. Há uma dimensão lúdica, há uma dimensão de fruição, do prazer de estar em contato com uma obra artística. E isso não implica ser cego às injustiças do mundo, às desigualdades. Pelo contrário, é o prazer de poder inventar a partir de uma observação da vulnerabilidade humana. Penso que esta edição do festival com 44 espetáculos [na programação oficial] é muito marcada por essa capacidade que os artistas têm de olhar a vulnerabilidade humana, coletiva, social, econômica ou individual, e às vezes biológica, emocional, psicológica, e, olhando para vulnerabilidades, encontrar o território fértil para a criação.
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