Entre chás medicinais e descrença política, Guiana Francesa é uma das regiões mais resistentes à vacina
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A Guiana Francesa, território da França que faz fronteira com o Brasil, é uma das regiões com um dos mais baixos índices de vacinação do país. Entre o ceticismo da população em relação à classe política e crenças em possíveis soluções vindas de ervas e plantas, a luta contra a pandemia de Covid-19 é vivida em outro ritmo.
Silvano Mendes, enviado especial a Caiena
“Atenção todos os passageiros, vocês estão entrando em uma zona na qual o novo coronavírus é particularmente ativo”. A mensagem do piloto pouco antes da aterrissagem no aeroporto Felix Eboué, em Caiena, dá o tom da viagem para quem desembarca atualmente nesse pedacinho da França em plena Amazônia.
A Guiana Francesa faz parte dos territórios ultramarinos que, como seus vizinhos das Antilhas mais ao norte (Guadalupe e Martinica), se destaca como uma região onde a vacinação contra a Covid-19 tem dificuldades de emplacar.
Segundo dados divulgados nesta quarta-feira (15) pela antena local da Agência Regional de Saúde (ARS na sigla em francês), 38% da população acima de 12 anos está totalmente vacinada, contra 88% na França metropolitana. A proporção assusta as autoridades, principalmente diante do risco da entrada de novas variantes, mais contagiosas, em uma zona conhecida pela intensa circulação de pessoas vindas dos quatro cantos do planeta e de fronteiras com o Brasil e o Suriname, difíceis de controlar por causa da Floresta Amazônica.
Mas, ao contrário de Guadalupe e Martinica, onde protestos violentos foram capa dos jornais no final de novembro, as manifestações contra a campanha de vacinação na Guiana Francesa não ganharam muito destaque na mídia além das fronteiras amazônicas. Mesmo assim, os moradores ainda se lembram de cestos de lixo incendiados nas ruas e das passeatas organizadas no segundo semestre deste ano por associações como a Caravana pela Liberdade, um coletivo que circula pelo território pregando sua oposição ao que considera como uma “imposição” do governo.
Como na França metropolitana, a vacinação não é obrigatória nesse território. Mas o passaporte sanitário, documento que prova que seu portador foi vacinado ou fez um teste com resultado negativo recentemente, também é exigido na Guiana Francesa para ter acesso a bares, restaurantes e atividades esportivas e culturais. E muitos veem esse dispositivo como um ataque às liberdades individuais.
Mas a resistência à vacina na Guiana Francesa é bem mais silenciosa do que sugerem as passeatas pelas ruas de Caiena e ou outras cidades do território. Ela é presente em uma parte da população que não protesta, mas prefere simplesmente continuar levando uma vida “normal”, sem se vacinar.
“Muita gente não contesta o fato de se vacinar, e sim o fato de que se tornou uma obrigação”, comenta o taxista Jean Marc, que já se imunizou mas tenta explicar os argumentos daqueles que resistem à campanha de vacinação, como muitos ouvidos pelas ruas de Caiena ou nos arredores do único centro de vacinação da cidade, onde até quem acaba de se vacinar contesta a situação.
“Me vacinei a contragosto. Não queria”, desabafa Nathalie, promotora comercial no setor editorial. “Eu gostaria de ter mais recuo antes de testar uma nova vacina. Não estou nada tranquila, pois não sei se o que acabo de fazer é bom ou não. Espero não ter problemas de saúde a médio ou longo prazo”, explica, ainda observando o esparadrapo no braço diante do centro de vacinação com salas de espera praticamente vazias.
“Tudo isso vem da metrópole”
Nathalie diz que foi “forçada” a se vacinar. “Só me vacinei por causa do meu trabalho, pois estava ficando cada vez mais difícil. Eu tenho contato direto com várias pessoas, participo de salões profissionais, e mesmo fazendo testes regularmente, agora eles só valem durante 24 horas, então ficou muito complicado. Se não fosse por isso, eu teria esperado mais tempo para me vacinar”.
A guianense utiliza os mesmos argumentos dos antivax da “metrópole”, como também é chamada a parte da França no continente europeu. Mas na Guiana Francesa a retórica contra a vacinação é permeada por elementos políticos que revelam uma insatisfação generalizada da população, que se sente abandonada pelo poder público. Como todas as decisões importantes são tomadas em Paris, a pandemia desperta um sentimento de abandono em parte dos guianenses, que se mostram cada vez mais desconfiados do governo central.
“Tudo isso vem da metrópole. O Estado sabe muito bem que não investiu suficientemente em termos de saúde nos territórios ultramarinos. Não temos hospitais, não há leitos para todos nos serviços de reanimação. Então, para não superlotar os hospitais, é melhor vacinar todo mundo”, comenta o motorista Christophe. “E o fato de ‘obrigar’ as pessoas a se vacinar desagrada muita gente”, martela.
Remédio criolo
Mas o argumento mais surpreendente vem daqueles que afirmam que resistem à vacina pois acreditam já estar imunizados graças a remédios caseiros feitos à base de plantas. Eles fazem parte da tradição local, como mostra a variedade de produtos do gênero vendidos em algumas feiras de Caiena.
Esses medicamentos alternativos, que podem ser fabricados com quassia amara, planta conhecida como couachi ou quinina de Caiena, ou outras misturas de ervas e folhas chamadas de remédio criolo, ainda povoam o discurso popular, apesar da falta de qualquer prova científica de sua eficácia.
“Talvez seja possível curar graças ao remédio criolo, mas não vai ser do dia para noite”, argumenta o taxista Jean Marc. “Se você não estiver habituado a tomar alguns medicamentos para limpar o seu corpo e tomar o remédio criolo agora, não fará nenhum efeito no seu organismo”, teoriza.
Questionado sobre esses tratamentos alternativos, o diretor geral do Instituto Pasteur de Caiena, Christophe Peyrefitte, prefere adotar um tom conciliador, sem combater diretamente as crenças populares e os costumes locais.
“Quando falamos de remédio criolo, podemos pensar também em qualquer tipo de chá de ervas. Ao mesmo tempo sabemos que as vacinas têm um efeito objetivo e as pessoas devem continuar se vacinando. Mas se essas pessoas quiserem tomar um chá pois elas se sentem melhor, que assim seja. Só que é importante ter em mente que para um grande número de patologias, nós temos um arsenal científico e médico que é proposto e que terá um impacto real. E sabemos, concretamente, que em uma população vacinada teremos uma proteção entre 90% e 98%”.
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