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Tensão no Caribe: ação militar cirúrgica dos EUA na Venezuela, intervenção direta ou só intimidação?

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Sob a alegação de uma ofensiva contra o tráfico de drogas, uma força aeronaval norte-americana parece preparada para uma guerra no Caribe, em frente à costa da Venezuela, por onde passa a menor parte das drogas aos Estados Unidos. As manobras visam mesmo combater traficantes ou o objetivo é derrubar o venezuelano Nicolás Maduro, líder de um regime considerado ilegítimo pelos Estados Unidos? Especialistas ouvidos pela RFI não descartam outros cenários, até mesmo o risco de um “papelão” por parte de Donald Trump, se não houver nenhuma ação militar.

Vista aérea do contratorpedeiro USS Sampson DDG-102 da Marinha dos Estados Unidos atracado perto da entrada do Canal do Panamá, em meio a um grande reforço das forças navais americanas no sul do Caribe e arredores, na Cidade do Panamá, Panamá, em 31 de agosto de 2025.
Vista aérea do contratorpedeiro USS Sampson DDG-102 da Marinha dos Estados Unidos atracado perto da entrada do Canal do Panamá, em meio a um grande reforço das forças navais americanas no sul do Caribe e arredores, na Cidade do Panamá, Panamá, em 31 de agosto de 2025. REUTERS - Enea Lebrun
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Nesta quarta-feira (3), Caracas acusou Washington de fazer execuções extrajudiciais, ao atacar um barco no sul Caribe que, segundo o presidente Donald Trump, transportava 11 traficantes de drogas. Foi o primeiro alvo de uma força aeronaval norte-americana que acabava de chegar ao Caribe, onde ficará pelos próximos meses.

“É uma clara mensagem de que os Estados Unidos não estão para um desfile naval. É uma demonstração de força”, afirma à RFI o analista de política internacional Fabián Calle, especializado em temas de Segurança e Defesa.

Oficialmente, a operação começa mirando o tráfico, exterminando um alvo através de um míssil, numa espécie de bloqueio de qualquer tentativa de remessa marítima de drogas. Porém, o método de ação começou com uma violação do direito internacional.

“Em matéria de direito do mar, com base na carta da ONU e a convenção de 1988 sobre drogas, nada autoriza um governo a afundar e matar 11 pessoas. Lançar um projétil é um procedimento unilateral, arbitrário e ilegítimo”, explica à RFI o sociólogo e catedrático em Relações Internacionais na Universidade Di Tella Juan Gabriel Tokatlian, uma referência na América Latina em matéria de Segurança e Defesa.

O correto, prossegue Tokatlian, seria o barco ser obrigado a parar. Depois, se a mercadoria transportada fosse ilegal, deveria ser confiscada e os traficantes, presos.

“Anunciar esse ataque como uma vitória de uma grande potência é francamente ridículo, marcando um gesto de prepotência e impotência. Esse fato tem menos a ver com uma guerra contra as drogas e mais com o fato de transformar a América Latina no epicentro de uma segunda ‘guerra contra o terrorismo’, com a participação direta das Forças Armadas norte-americanas”, denuncia Tokatlian, comparando com a guerra que, nos anos 2000, os Estados Unidos lançaram contra o Afeganistão e o Iraque.

Guerra contra o tráfico

Sete navios militares, um submarino nuclear, dezenas de aviões e de helicópteros, mísseis e milhares de militares constituem uma força aeronaval que parece mais pronta para uma guerra do que para combater o tráfico de drogas, fazendo com que todos procurem resposta para a maior das incógnitas: o teatro criado por Donald Trump no Caribe pretende uma intervenção militar, direta ou indireta, para derrubar o ditador venezuelano Nicolás Maduro?

O tamanho da força é visto como desproporcional para uma missão oficialmente apenas para interceptar carregamentos de droga, mas, ao mesmo tempo, seria insuficiente para uma invasão. A Venezuela não é um produtor relevante de cocaína, mas é um país de trânsito por onde a droga produzida na Colômbia passa.

A principal guerra de Trump é contra o fentanil, uma substância que não é produzida na Venezuela, e sim no México, a partir de substâncias químicas importadas da China. Além disso, 74% da cocaína enviada aos Estados Unidos é transportada pelo Pacífico e apenas 24% pelo Caribe. Ou seja, enquanto a força aeronaval dos Estados Unidos cerca a Venezuela, a maior parte da droga está saindo pela Colômbia e pelo Equador.

“Por enquanto, esta é uma operação improvisada e parece ter um sentido intimidatório. É possível que haja alguma ação militar em alto mar e que isso seja apresentado como um êxito no desmantelamento do negócio das drogas”, considera Juan Gabriel Tokatlian. “Se o objetivo não for combater o tráfico de drogas, mas derrubar o governo de Nicolás Maduro, então a operação de Trump vai precisar de um contingente de força muito maior e um considerável apoio de civis e militares em território venezuelano”, complementa.

“A frota não parece ser meramente para interceptar aviões e barcos com drogas. Ao mesmo tempo, não parece uma ofensiva para uma invasão a um país com 30 milhões de habitantes, por mais que a resistência provavelmente seja nula”, reforça Fabián Fabián Calle.

Em paralelo à aproximação da força de guerra, nos tribunais norte-americanos, promotores avançam contra Maduro e contra o seu braço-direito, Diosdado Cabello, além de ex-membros do regime venezuelano. Essa combinação de táticas, militares e judiciais, tem levado muitos a suspeitarem de uma intervenção militar dos Estados Unidos, cuja ótica sobre a Venezuela é de um país ocupado por um ditador ilegítimo, que não apresentou provas de ter ganho as eleições de julho de 2024.

Narcoterrorismo

No mesmo dia da sua posse, Donald Trump assinou a Ordem Executiva 14157 que estabelecia, em nome da a segurança nacional, a “eliminação total” dos cartéis do tráfico de drogas, equiparando essas organizações criminosas com grupos terroristas, o chamado “narcoterrorismo”. Assim, o “Trem de Aragua” e o “Cartel dos Sois”, estruturas do crime na Venezuela, passaram a ter a mesma classificação de grupos como Al Qaeda ou o Estado Islâmico, sendo o Cartel dos Sois liderado pelo próprio Nicolás Maduro, segundo a acusação.

Nos tribunais norte-americanos, Maduro é acusado de “comandar uma organização na qual altos membros do governo venezuelano, usando companhias estatais – especialmente a petrolífera PDVSA – e estruturas militares, traficam drogas, branqueiam dinheiro e exercem o poder através da violência e da corrupção”.

Presidente de Venezuela, Nicolás Maduro, é considerado por Washington como o líder uma organização narcoterrorista. (01/09/2025)
Presidente de Venezuela, Nicolás Maduro, é considerado por Washington como o líder uma organização narcoterrorista. (01/09/2025) AP - Ariana Cubillos

A última invasão militar dos Estados Unidos na América Latina aconteceu no Panamá em dezembro de 1989, quando o então presidente, George H. W. Bush, usou 27 mil militares para capturar o ditador Manuel Antonio Noriega, acusado de tráfico de drogas.

 

O contingente de Trump agora é, no máximo, de oito mil militares. Ao contrário de Noriega em 1989, Maduro conta com numerosos membros das Forças Armadas cujas lideranças até hoje foram leais ao regime. Além disso, o território venezuelano, bem mais extenso, com guerrilheiros e traficantes armados, exige uma logística complexa.

A maioria dos especialistas descarta uma invasão à Venezuela, mas não alguma ação militar relâmpago e específica. “Podemos especular que não passaria de algum tipo de ação relâmpago, mas há questões legais que impedem o presidente dos Estados Unidos de executar ações extrajudiciais sem nenhum tipo de justificativa”, sublinha Tokatlián, acrescentando que a operação militar não teve tempo suficiente de preparação.

Há dúvidas quanto à existência de alguma estratégia ou se toda a ofensiva é outra demonstração de uma política exterior errática, sob a liderança de um Trump imprevisível. “Duvido muitíssimo que, em tão pouco tempo, os Estados Unidos tenham elaborado planos de contingência sobre a Venezuela. Isso requer organização, operatividade, logística etc”, salienta Tokatlián. “Tudo o que vimos foi ao longo de um mês. A minha impressão é que uma operação assim é absolutamente perigosa e pode provocar incidentes em alto mar se os navios entrarem no espaço marítimo venezuelano”, adverte.

Hipóteses de ações

Se as chances de uma invasão à Venezuela parecem remotas, abre-se um leque de possibilidades, desde uma ação militar específica a uma operação de desgaste, passado por uma estratégia de intimidação e até estimular uma rebelião interna, cooptando dissidentes. Uma hipótese é uma operação de desgaste do tráfico, com bloqueio aeronaval das remessas de drogas.

“Mas não acredito que o objetivo seja somente esse. É também geopolítico. Os Estados Unidos não podem ter, no Caribe, um narcoestado aliado da China, da Rússia, do Irã. Acabou a falta de interesse dos Estados Unidos pela região”, observa Calle.

Outra possibilidade é gerar uma rebelião interna na Venezuela a partir da traição de oficiais em troca da recompensa. “O objetivo pode ser exercer uma forte pressão psicológica sobre o regime, incentivando um racha. A partir de algumas traições, prepara-se o terreno para algum tipo de operação específica, lembrando que o Cartel dos Sois, ao ser agora uma organização terrorista, está na mesma categoria de Al Qaeda, Hezbollah e Hamas. É um assunto de segurança nacional que envolve outras agências, alterando o cenário”, destaca Fabián Calle.

Por informações que levem à prisão de Maduro, o governo Trump duplicou a recompensa a US$ 50 milhões.

Uma terceira hipótese é um ensaio para uma operação cirúrgica a futuro. “Pode ser em novembro, dezembro ou janeiro depois de conhecer como as defesas da Venezuela comportam-se. Essa força aeronaval ficará muitos meses no Caribe. Tudo pode acontecer no final do período, embora manter a força de forma prolongada represente um alto gasto”, pondera Tokatlián.

Uma quarta possibilidade é a deportação maciça de venezuelanos. Para deportações sem processos, Donald Trump pretende usar a Lei de Inimigos Estrangeiros, uma lei que só entra em vigência em tempos de guerra. Agora, poderia usar os ataques a barcos de “narco terroristas” para justificar as deportações maciças.

A missão deve durar vários meses, período durante o qual pode haver novidades a partir dos tribunais norte-americanos e dissidências entre os aliados de Maduro.

Resistência venezuelana

Em resposta à ofensiva de Trump, a Venezuela anunciou a mobilização de navios da Marinha e drones para patrulhar as suas águas territoriais. “Pelo nível do circo que estamos vendo, com desfiles patéticos, com uniformes fora do tamanho, com rifles velhos, com barcos a remo para enfrentar uma frota militar, o nível de histeria e de preocupação nos comandos da Venezuela é alto”, interpreta Fabián Calle.

Nicolás Maduro incentivou as jornadas para o alistamento de 4,5 milhões de milicianos, um número considerado irreal por todos os especialistas. “A Venezuela não está em condições de gerar uma guerra de guerrilhas. É um país do qual saíram 9 milhões de pessoas. Um país com uma crise sistêmica. O governo levou uma surra nas eleições. Se os Estados Unidos quiserem, podem fazer a Venezuela voltar ao período paleolítico”, afirma Calle.

“Esse alistamento de milicianos é tão improvisado que torna inexistente qualquer espírito de dissuasão. E, ainda por cima, essa população estará armada. Qual treinamento tiveram? Qual formação receberam?”, questiona Juan Gabriel Tokatlián.

Mas o especialista também considera que a lealdade das Forças Armadas com Nicolás Maduro manteve-se a toda prova.

“As Forças Armadas têm-se preparado para os chamados conflitos assimétricos, isto é, a eventualidade de o país ser ocupado, atacado ou invadido, preparando-se para longos contingentes de combate interno. Nas últimas décadas, os militares venezuelanos também aprenderam as táticas usadas na Argélia, no Vietnã e no Oriente Médio. Possuem e recebem informação de Inteligência da Rússia. Têm uma estrutura de comando centralizada. Ou seja: os militares venezuelanos têm formas de repelir um ataque”, garante.

Para o governo venezuelano, a alegada operação contra o tráfico de drogas, além de ameaçar a paz na região, não passa de uma antiga artimanha dos Estados Unidos para justificar uma intervenção num país rico em recursos energéticos para roubar essa riqueza.

Papel de ridículo

A última hipótese é que, depois de meses em frente à costa venezuelana, os Estados Unidos não lancem nenhuma ação militar. Nesse caso, além do presente que Trump lhe deu ao permitir que Maduro explore o discurso do nacionalismo e da soberania nacional, unificando o país depois de roubar as eleições, o próprio presidente norte-americano saia desmoralizado.

“As consequências de não fazer nada mostrariam um certo ridículo, inclusive pelo custo diário que toda a operação impõe. Seria ridículo fazer todo esse movimento para, logo depois, ir embora. Não fazer nada terá um custo simbólico e material para os Estados Unidos, mas também pode ser a primeira operação de outras, sendo esta com um propósito intimidatório”, conclui Juan Gabriel Tokatlián.

Para o analista Fabián Calle, seria um papelão internacional. “Se depois de dois meses, essa ofensiva não fizer nada contundente, será um grande papelão e uma festa midiática para a Rússia e para a China, aliados da Venezuela na região”, avalia, em entrevista à RFI.

A desmoralização de Trump seria um tiro pela culatra: o fortalecimento de Maduro.

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