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Argentina inicia julgamento dos 'Cadernos da Corrupção' com Cristina Kirchner no centro das acusações

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Começa nesta quinta-feira (6) na Argentina o julgamento do maior processo de corrupção da história do país, o chamado “Cadernos da Corrupção”. O caso se baseia em cadernos escolares que continham anotações detalhadas da arrecadação ilegal de dinheiro de empresários em troca de obras públicas. Segundo a acusação, o suborno arrecadado irrigava todo uma pirâmide de membros do governo até chegar à ex-presidente Cristina Kirchner, acusada de liderar uma organização criminosa. O julgamento deve estender-se pelos próximos anos com 87 acusados e 626 testemunhas.

Cristina Kirchner é acusada concretamente de ser coautora de 204 casos e partícipe em outro.
Cristina Kirchner é acusada concretamente de ser coautora de 204 casos e partícipe em outro. AFP
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

A ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015) enfrenta a partir desta quinta-feira (6) o julgamento do maior processo de corrupção da história da Argentina. Ela é acusada de liderar uma organização criminosa para arrecadar subornos de empresários em troca de contratos públicos entre 2003 e 2015.

O esquema teria sido criado pelo seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007), falecido em 2010. A esposa teria herdado e liderado o esquema que envolveu diversos membros do seu governo e dezenas dos maiores empresários do país.

No total, além dela, 19 funcionários públicos entre ministros e secretários, dois motoristas e 65 empresários, a maioria do setor construção civil, mas também da energia e dos transportes, de empresas argentinas e também internacionais.

Cristina Kirchner é acusada de ser coautora de 204 casos e partícipe em outro. Ao todo, serão julgados 304  que envolvem seis processos conexos da investigação sobre os “Cadernos da Corrupção”, que abrange 540 casos distribuídos em 10 processos associados.

As acusações incluem encobrimento, admissão de subornos e corrupção ativa e passiva.

Segundo a promotora pública Fabiana León, trata-se do “maior mecanismo de corrupção dos últimos 20 anos” e da “investigação de corrupção mais extensa da história judicial argentina, uma das maiores do mundo”. 

Julgamento por videoconferência 

Diante do número expressivo de envolvidos - 87 acusados e 626 testemunhas -, o julgamento será de forma virtual, por videoconferência e poderá ser acompanhado pelo YouTube.

A primeira fase de leitura dos requerimentos, das evidências e das acusações vai até o final do ano. Nesta etapa, todos os acusados e os seus advogados são obrigados a estar presentes.

A declaração das testemunhas e dos peritos será a partir do ano que vem, quando os acusados também poderão defender-se.

Durante os testemunhos em 2026, a videoconferência será fechada apenas aos jornalistas e credenciados para evitar que uma testemunha se adapte ao relato da outra. O Ministério Público quer que essa fase seja presencial.

As defesas serão abertas ao público virtual, assim como a leitura do veredito que só deve acontecer dentro de alguns anos.

O mecanismo de corrupção

As investigações, iniciadas em 2016, estão baseadas em oito cadernos de Oscar Centeno, então motorista do Ministério do Planejamento. O autor dos cadernos está processado e tornou-se delator premiado.

Durante anos, Oscar Centeno anotou datas, locais, trajetos e nomes envolvidos cada vez que foi arrecadar suborno dos empresários e cada vez que levou o dinheiro ao Ministério, à casa de membros do governo ou à casa de Cristina Kirchner. Em algumas ocasiões, também filmou.

O mecanismo envolvia a atribuição de obras públicas, de concessão de linhas ferroviárias e de estradas de rodagem a empreiteiras. Tudo mediante a entrega de propina a funcionários públicos.

As empresas construtoras estabeleciam preços elevados nas ofertas de licitação, já considerando o suborno. Havia formação de artel para que todas as empreiteiras participassem do esquema.

Segundo o financista Ernesto Clarens, próximo dos Kirchner, os preços das obras eram 20% acima do valor real. A partir de 2011, a porcentagem caiu para 3%.

Logo abaixo da ex-presidente, estavam o então ministro do Planejamento, Julio de Vido, o seu subsecretário Roberto Baratta e o ex-secretário de Transportes, Ricardo Jaime.

O empreiteiro Carlos Wagner, então presidente da Câmara Argentina da Construção, organizava o esquema e distribuía as obras a todas as empresas envolvidas, cujos donos são alguns dos maiores empresários do país.

Empresários delatores

Somente em 2016, durante o governo do então presidente Mauricio Macri (2015-2019), a Argentina passou a ter a figura jurídica do “processado colaborador”, popularmente conhecida no país como “arrependido”.

Também em 2016, a legislação passou a considerar a responsabilidade penal de empresários, até então isentos de qualquer investigação, justamente para facilitar a participação sem custos penais.

Assim, pela primeira vez na história argentina, os empresários foram acusados e puderam negociar uma “delação premiada”, fundamental para o processo sair dos cadernos e passar às provas.

No total, 47 empresários e quatro ex-funcionários públicos tentaram evitar o julgamento, oferecendo dinheiro e até propriedades no exterior como ressarcimento. Porém, os 13 milhões de dólares totais oferecidos foram vistos como "irrisórios".

A promotora pública, Fabiana León, considerou que “não há preço que possa pagar o dano institucional” e disse que “a sua procuradoria não vendia impunidade”.

Uma das estratégias adotadas por empresários investigados foi tentar transferir seus casos para a Justiça Eleitoral, alegando que os recursos recebidos eram destinados ao financiamento ilegal de campanhas. Com isso, esperavam penas mais brandas ou apenas a aplicação de multas.

Entre os que tentaram seguir esse caminho está o empreiteiro Angelo Calcaterra, primo do ex-presidente Mauricio Macri, que foi o primeiro a firmar acordo de delação premiada.

A estratégia chegou a ser aceita na primeira instância, mas foi anulada na segunda. Ainda assim, cabe recurso, e diversos empresários pretendem insistir nessa tese paralelamente ao julgamento principal.

Segundo o Ministério Público, “não havia nenhum tipo de intermediário, pois eram os próprios funcionários públicos que arrecadavam o dinheiro e se comunicavam diretamente com os empresários”

Papel da imprensa

Os cadernos escolares nos quais o motorista Oscar Centeno anotou os detalhes de anos de arrecadação ilegal foram entregues ao jornalista Diego Cabot, do jornal La Nación. A partir dessas anotações, começaram as investigações jornalísticas, mas o volume de casos requeria uma investigação da Justiça.

Os cadernos foram, então, entregues ao promotor Carlos Stornelli, que conduziu as investigações monitoradas pelo já falecido juiz Claudio Bonadío. 

E esse desenlace pode acontecer com muitos dos envolvidos, beneficiados pela demora dos tempos da Justiça.

O julgamento pode levar anos. O tempo será considerado para a sentença dos empresários, cujas condenações vão variar de um a seis anos. Dos 91 acusados inicialmente, quatro já faleceram.

Cristina Kirchner, com 72 anos, condenada a seis anos de prisão domiciliar em outro processo judicial, argumenta que “não há provas” contra ela.

“Em nenhum caso, existem provas que me vinculem com os supostos delitos”, repete a ex-presidente, relembrando sempre que tanto ela quanto o seu falecido marido “foram eleitos democraticamente pelo povo argentino em três eleições consecutivas”.

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