Linha Direta

Bolívia decide nas urnas a receita para superar a maior crise econômica dos últimos 40 anos

Publicado em:

Os bolivianos vão às urnas no próximo domingo (19) para um inédito segundo turno das eleições presidenciais. O pleito marca o fim de um ciclo político e econômico de 20 anos de governos de esquerda, liderados ou sob influência do ex-presidente Evo Morales. Em disputa, dois candidatos que prometem mudança — radical ou gradual. Essa nova receita pode contar com o apoio direto do governo de Donald Trump, que monitora as eleições bolivianas com interesse em substituir a presença da China no país.

Os dois candidatos ao segundo turno das eleições presidenciais na Bolívia: à esquerda, o conservador Jorge Quiroga, da Aliança Livre; à direita, Rodrigo Paz, do Partido Democrata Cristão (PDC). La Paz, 12 de outubro de 2025.
Os dois candidatos ao segundo turno das eleições presidenciais na Bolívia: à esquerda, o conservador Jorge Quiroga, da Aliança Livre; à direita, Rodrigo Paz, do Partido Democrata Cristão (PDC). La Paz, 12 de outubro de 2025. REUTERS - Claudia Morales
Publicidade

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Após quase duas décadas de domínio do partido de Evo Morales, o Movimento ao Socialismo (MAS), a Bolívia está prestes a iniciar um novo ciclo, no qual a esquerda, com sua economia estatizante, dá lugar a uma abertura econômica, sob liderança da direita ou do centro político.

Os dois modelos têm propostas semelhantes, com diferenças no grau de intensidade, mas compartilham o objetivo de abrir a economia ao mundo. Independentemente do vencedor, será necessário oxigenar uma economia em colapso, marcada por inflação galopante e escassez de produtos básicos. O novo presidente terá pouco tempo para agir: a posse está marcada para 8 de novembro, apenas 20 dias após o pleito.

De um lado, o ex-presidente Jorge Quiroga (2001–2002), economista de 65 anos, conhecido como “Tuto”, lidera a coalizão Aliança Livre, de direita. Do outro, pelo Partido Democrata Cristão, de centro, está o senador Rodrigo Paz Pereira, economista de 58 anos e filho do ex-presidente de esquerda Jaime Paz Zamora (1989–1993).

Tuto Quiroga tenta retornar à presidência pela quarta vez. Foi ministro da Economia no governo de Jaime Paz Zamora e, posteriormente, vice-presidente de Hugo Banzer (1997–2001), que deixou o cargo por motivos de saúde, permitindo que Quiroga assumisse aos 37 anos.

Rodrigo Paz Pereira já foi vereador, deputado e prefeito de Tarija, no sul do país. Esta é sua primeira candidatura à presidência.

A cientista política boliviana Lily Peñaranda, especialista em relações internacionais, resume à RFI: “A Bolívia decide neste domingo a metodologia com a qual sairá desta crise econômica, social e política. Na verdade, a situação é tão crítica que o único caminho possível passa pelo ajuste para reduzir o déficit fiscal”.

Leia tambémCandidato inesperado surpreende na Bolívia e corre com vantagem num inédito segundo turno

Disputa aberta

No primeiro turno, realizado em 17 de agosto, Rodrigo Paz Pereira obteve 32% dos votos, enquanto Tuto Quiroga ficou com 26,7%. Dois meses depois, segundo quatro pesquisas divulgadas ao longo de outubro, as posições se inverteram.

Jorge Quiroga lidera com intenções de voto entre 43% e 47%; Rodrigo Paz Pereira aparece com 33% a 39%.

Cristian Buttié, diretor da CB Consultores e responsável por uma das pesquisas, avaliou para a RFI as razões dessa mudança de posição do eleitorado.

“Há dois vetores importantes que se cruzam para explicar essa virada: Tuto Quiroga representa a verdadeira mudança, e o MAS é rejeitado por 80% da população. Os eleitores se decepcionaram tanto com o MAS que agora não querem nenhuma opção que se aproxime disso. Veem Quiroga como o mais distante”, afirmou.

O especialista em opinião pública contabiliza 44,4% das intenções de voto para Tuto Quiroga e 36,2% para Paz Pereira. Votos brancos, nulos e indecisos somam 19,4%. Além disso, historicamente, as pesquisas na Bolívia costumam ser imprecisas. Ou seja, a disputa permanece aberta.

No primeiro turno, o MAS — controlado por Evo Morales durante duas décadas — obteve apenas 3,1% dos votos, no limite mínimo de 3% exigido para manter o registro partidário.

Enquanto Quiroga é visto como a opção de mudança mais radical, Paz Pereira defende uma transição gradual.

Peñaranda indica: “As pessoas realmente não querem nada que se relacione com o Movimento ao Socialismo. Depois de 20 anos no poder, existe um cansaço social. O MAS prefere Rodrigo Paz Pereira. Membros do partido chegaram a pedir voto para ele. Mas a população se afastou dessa opção”, observa a especialista.

Leia tambémEleições na Bolívia podem representar o fim de 20 anos de hegemonia da esquerda e uma possível abertura econômica

Pior crise em 40 anos

A situação crítica da Bolívia decorre da escassez de divisas, provocada pela queda nos investimentos diretos e nas exportações — especialmente de gás natural, que já foi o principal produto de exportação do país. Sem novas explorações de hidrocarbonetos e com Brasil e Argentina comprando cada vez menos, as contas públicas entraram no vermelho.

O valor do dólar em relação ao boliviano está congelado desde 2008. A manutenção artificial da taxa de câmbio em 6,96 bolivianos por dólar durante 17 anos fez com que a moeda norte-americana valesse o dobro no mercado paralelo.

O país depende da importação de combustíveis, alimentos e medicamentos, mas a falta de recursos gerou uma grave escassez de produtos básicos, com preços em alta.

As filas nos postos de gasolina são quilométricas. Há pessoas que chegam a dormir por dias à espera de abastecimento.

Os subsídios em alimentos e combustíveis representam 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto o déficit fiscal atinge 13% do PIB.

A inflação, contida artificialmente pelos subsídios e pela taxa de câmbio congelada, acumula 24% nos últimos 12 meses.

Peñaranda prevê: “Isso significa que, quando os preços forem reajustados, haverá ainda mais inflação. Quando a taxa de câmbio for flexibilizada, haverá mais inflação. Para alcançar a estabilidade, ainda haverá sofrimento para a população, porque a saída passa por um forte ajuste fiscal”, avalia.

Esse será outro desafio para o novo governo: administrar o descontentamento social gerado pelo ajuste, que deve provocar protestos. Nas ruas, movimentos sociais — muitos liderados por Evo Morales — podem dificultar ainda mais o processo.

“Acredito numa onda de protestos, porque a crise ainda vai piorar antes de melhorar. Haverá uma crise muito grande. Eu diria que é alta a probabilidade de que as próximas eleições sejam antecipadas devido à crise social”, alerta Peñaranda.

As visões de Quiroga e Paz Pereira

Para romper com o modelo de gastos públicos e subsídios, Jorge Quiroga propõe um plano de choque que reduza o tamanho do Estado, abra a economia e atraia investimentos. Essa proposta é vista como um forte ajuste fiscal.

Rodrigo Paz Pereira defende um plano de “capitalismo para todos”, com concessão de créditos a taxas subsidiadas e alívios tributários para estimular a economia via expansão monetária. Essa proposta é considerada inflacionária e com impacto limitado na redução do déficit fiscal.

Peñaranda compara: “Paz Pereira fala mais sobre amortecer a queda para proteger os mais vulneráveis durante o ajuste. Quiroga é mais à direita, defende privatizações e uma economia de ajuste, como nos anos 1990”.

Tuto Quiroga promete fechar um acordo financeiro imediato de US$ 12 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Paz Pereira acredita que é preciso primeiro organizar a casa para depois buscar empréstimos.

Segundo Cristian Buttié, as pessoas querem uma mudança radical, não uma mudança moderada. “Vejo um paralelismo com Milei na Argentina. Não estão preocupadas com ideologia. É uma determinação por mudar o modelo”, destaca o consultor.

Ajuda financeira de Trump

Tal como Javier Milei, Tuto Quiroga quer abrir a economia, firmar acordos de livre comércio e se distanciar do Mercosul — bloco formado por Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e, mais recentemente, integrado pela Bolívia.

Nesta semana, o governo de Donald Trump sinalizou que pode oferecer ajuda financeira à Bolívia, após duas décadas de forte aproximação com a China.

Durante a reunião entre Milei e Trump na Casa Branca, na terça-feira (14), o secretário de Estado, Marco Rubio, afirmou que “os candidatos à presidência da Bolívia já sinalizaram que estão abertos a uma aproximação com os Estados Unidos”.

Rubio acrescentou: “Atualmente, temos uma grande aliança com a Argentina. Um dos fatos mais promissores deste mês serão as eleições na Bolívia. Depois de mais de 20 anos de governos hostis contra os Estados Unidos, as eleições conduzirão a melhores relações com Washington. Os dois candidatos que participam do segundo turno querem relações mais fortes e melhores com os Estados Unidos. Há uma oportunidade transformadora na Bolívia”.

Na semana anterior, o secretário do Tesouro, Scott Bessent, já havia comentado essa mudança política na Bolívia, favorável aos interesses norte-americanos. “Vamos usar a Argentina como exemplo. Muitos governos estão virando à centro-direita. Temos a Argentina, o Paraguai, o Equador, a Bolívia e, acho, a Colômbia nas próximas eleições”, projetou Bessent.

A proposta de Trump segue a mesma lógica: ajuda financeira em troca de prioridade na exploração de recursos naturais, especialmente o lítio, em detrimento das empresas chinesas.

Bolívia, Argentina e Chile concentram mais de 50% das reservas mundiais de lítio, metal usado em baterias de veículos elétricos.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios