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"Vacinas contra a Covid-19 são um bem comum”, diz médico que defende a quebra de patentes

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O psiquiatra franco-brasileiro Carlos Parada publicou um artigo de opinião no jornal francês Le Monde na última quarta-feira (3) com um apelo para que as vacinas contra a Covid-19 sejam consideradas um bem comum e que não sejam aplicadas as regras de patentes em plena pandemia. Segundo ele, esta ideia vem ganhando mais e mais adeptos. 

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O psiquiatra franco-brasileiro defende a quebra de patentes para as vacinas contra a Covid-19 no mundo inteiro.
O psiquiatra franco-brasileiro defende a quebra de patentes para as vacinas contra a Covid-19 no mundo inteiro. © RFIElcio Ramalho
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“Me parecia uma ideia no ar, que todo mundo tinha e faltava só explicitar. E me parecia tão absurda a situação atual, que eu resolvi escrever este artigo. Depois, com as reações, vi que é como se todo mundo pensasse, mas não ousasse dizer ou concretizar”, diz.

Parada alerta principalmente para o risco do monopólio na questão da imunização. “É perigoso: primeiro porque a gente perde muito tempo e segundo porque não vai vacinar todo mundo com este sistema. E é injusto, porque cria uma hierarquia entre as pessoas: quem pode, quem não pode, quem passa primeiro, os ricos primeiro, os pobres depois, quem tem seguro e quem não tem… e essa injustiça, numa crise desta, mundial, não é possível”, argumenta.

Uma patente de um laboratório farmacêutico dura em torno de 20 anos antes que o medicamento possa ser fabricado por outras empresas, em forma de genérico. “Na crise excepcional que estamos atravessando, esperar 20 anos é um absurdo."

Patentes foram compradas pelas gigantes farmacêuticas

"Vale lembrar que a imensa maioria das patentes foi comprada: não foram as empresas que hoje vendem que produziram essa biotecnologia. A tecnologia foi comprada de pequenas empresas, e as grandes hoje especulam. Este sistema deve ser mudado e pode ser alterado. Existem mecanismos legais para isso. O próprio presidente Macron, em maio [de 2020] anunciou que iria tornar isso um bem público. Não tem nada de tão absurdo no que eu estou falando", defende o psiquiatra.

Para ele, o argumento de que o investimento em pesquisa justificaria a comercialização das vacinas não é válido para este caso: "Eu pergunto quanto a Moderna, a Pfizer e a AstraZeneca investiram e quanto elas estão ganhando. E quem puder me responder isso pode argumentar. Além disso, essas patentes foram compradas e elas foram financiadas com dinheiro público: € 40 bilhões foram investidos pela Europa e Estados Unidos no desenvolvimento destas vacinas, em incentivo, empréstimo e pré-compras”.

A da Moderna, por exemplo, foi 10% financiada pelo governo americano, ele lembra. "Então este argumento de que eles investiram e agora está certo eles ganharem é completamente abstrato e ideológico."

Em seu artigo no Le Monde, Carlos Parada lembra que, no caso da Aids, Brasil e Índia adotaram uma política qe fabricação e distribuição de remédios retrovirais genéricos que garantiu o acesso ao tratamento gratuita para suas populações. "Nem a indústria farmacêutica nem a pesquisa faliram, e milhões de vidas foram salvas", escreveu.

Brasil votou contra a quebra de patentes

“Em outubro de 2020, a Índia e a África do Sul levaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) um pedido para deixar as patentes abertas, com mais 90 países atrás. Os países desenvolvidos, Canadá, Estados Unidos, União Europeia e o Brasil votaram contra. Então existem países que pediram e foram negados. O que é dramático não é só que tenha sido negado, mas que ninguém, na época, tenha ouvido falar disso”, diz.

Ele lembra que voto do Brasil na OMC vai na contra-mão do que o país costumava defender em relação ao tema de quebra de patentes. "É um absoluto contra-senso, é inexplicável. Quem deve explicar isso é o governo brasileiro, não eu. Na história do Brasil, a produção de remédios nacionais para o bem da população é quase gloriosa. O Brasil é um exemplo no tratamento da Aids, graças a estas quebras ou ameaças de quebras de patentes", relembra. 

Pressão popular

Parada defende que, sem uma pressão popular, seja em que país for, a quebra de patentes não vai acontecer. “Esta pandemia fez de nós seres passivos, que esperam a proteção do Estado e dos governos que decidem. O que eu sonho é que hoje os jovens, principalmente, entendam que eles podem decidir e podem mudar o destino da história”.

“É importante entender que esta crise não vai acabar amanhã, não vai acabar daqui a dois meses. Isso vai durar e vai matar muita gente, de modo imprevisível. Como é que nós vamos reagir no dia em que o vírus mutar e começar a matar crianças e jovens? Nós vamos esperar 20 anos por cada patente? Novas vacinas serão necessárias, é importante entender isso. Nos tratamentos; novos testes. Até quando nós vamos ficar no sistema atual, de pagar caro para laboratórios que já são subvencionados?”, questiona.

Capacidade de produção

Outrao ponto que vem travando as campanhas de vacinação, sobretudo na Europa, é a capacidade de produção, que não acontece no ritmo desejado. Segundo Parada, existem mais indústrias disponíveis a produzir vacinas no mundo do que a" meia dúzia" atual. "O governo francês hoje pediu à Sanofi para produzir em julho as vacinas. Isso já poderia ter sido feito há muito tempo e sem que seja apenas um pedido. Como dizem alguns hoje aqui na França: 'se as indústrias não querem fazer, nós vamos ter que requisitar as indústrias'. Eles não dizem que estamos em período de guerra? A Renault foi nacionalizada na França no pós-guerra para fazer automóveis. Hoje, para fazer remédios a gente não pode?". 

Uma situação excepcional precisa de um remédio excepcional, defende em seu artigo. "Esta pandemia é reveladora de uma estrutura injusta. Ela não criou esta situação, mas é uma lupa de algo que está acontecendo há anos. No entanto, hoje a situação é excepcional, e que se tenha uma reação excepcional para esta crise planetária não me parece absurdo. Quanto tempo nós vamos aguantar isso? É inviável", exaspera-se. 

O psiquiatra lembra que existe uma petição de 150 personalidades do mundo inteiro, dos quais 25 prêmios Nobel, que pedem isso, dizem que a vacina é um bem comum. “Não é uma ideia obscura. Mas sem pressão, sem que os governante sintam que o povo pede isso, eles nunca vão fazer. Eu sempre digo que a saúde é um direito da população, e a nossa saúde é um dever dos que nos governam”, reitera.

“Eu acredito que esta crise ainda vai durar muito e a gente pode chegar num movimento de desespero das pessoas e isso pode mudar”, conclui Parada.

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