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'Estamos só no começo da crise', diz cientista político sobre desdobramentos do tarifaço de Trump

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Mais do que uma medida econômica, o chamado "tarifaço" assinado por Donald Trump na quarta-feira (30) carrega um forte componente político e ideológico, na avaliação do cientista político Gaspard Estrada, da London School of Economics.

A punição tarifária de Trump inclui exceções importantes para o Brasil, maior economia da América Latina.
A punição tarifária de Trump inclui exceções importantes para o Brasil, maior economia da América Latina. REUTERS - Dado Ruvic
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Em entrevista à RFI, Estrada analisa os desdobramentos da decisão, os impactos para setores estratégicos da economia e suas implicações diplomáticas, além de possíveis consequências políticas no contexto das eleições presidenciais brasileiras de 2026.

RFI: O tarifaço de Trump não é apenas mais uma ameaça. Qual o componente ideológico e político dessa iniciativa, na sua opinião, e como isso impacta nas negociações entre os dois países?

Gaspard Estrada: O tarifaço imposto pelos Estados Unidos ao Brasil, evidentemente, tem um componente político que está escrito explicitamente na ordem executiva assinada pelo presidente dos Estados Unidos. Isso, a meu ver, vai dificultar as negociações sobre essa problemática comercial, e é evidente que não se trata só de um assunto econômico, e sim, sobretudo, de um problema político.

RFI: Que resultados você acha que podemos ter no curto e médio prazo para o Brasil?

Gaspard Estrada: Haverá uma consequência econômica, porque há vários setores econômicos que são afetados por esse tarifaço. Agora, é evidente que o impacto será menor do que o planejado num primeiro momento, porque houve um grande volume de produtos que não fazem mais parte desse tarifaço. Isso vai permitir que o governo brasileiro possa dar apoios aos produtores e focalizar esses programas de apoio nos itens que, sim, serão afetados. Mas, de modo geral, não será uma catástrofe econômica para o Brasil.

RFI: Vamos falar de outro gigante latino-americano, que é o México e que também é comandado por alguém que está à esquerda do espectro político, a presidente Claudia Sheinbaum, assim como Lula no Brasil. Em um passado muito recente, o México enfrentou ameaças tarifárias semelhantes, mas conseguiu negociar. O Brasil deixou de fazer ou fez algo errado nessas negociações com Trump? 

Gaspard Estrada: Eu sinceramente diria que não, porque o Brasil fez, tentou fazer uma coisa similar ao México, quer dizer, tentar ter um diálogo diplomático, complementando com toda uma associação com o setor empresarial, justamente para deixar claro quem ganha e quem perde com esse tipo de imposição. Então, do ponto de vista do México, esse anúncio unilateral dos Estados Unidos foi visto com muita preocupação, porque o país tem um acordo de comércio com os Estados Unidos que, inclusive, foi assinado pelo presidente Trump. Não é o caso do Brasil, que não tem acordo de livre comércio. Agora, o que fez com que a coisa mudasse de rumo e de patamar entre — se a gente compara México com o Brasil — é que tem, em Washington, um ator público brasileiro com acesso ao poder executivo americano e que está trabalhando contra os interesses do seu país.

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RFI: O senhor está falando do Eduardo Bolsonaro?

Gaspard Estrada: Exatamente. Não tem o Eduardo Bolsonaro no caso do México. Então, é evidente que isso faz com que a negociação entre os dois países possa acontecer de uma maneira muito mais racional e que os interesses não só dos Estados, mas também os interesses empresariais, sejam ouvidos de maneira muito mais clara pelas autoridades americanas. A meu ver, esse é o grande diferencial entre México e Estados Unidos e Brasil.

RFI: O fato de alguns setores da economia brasileira, setores estratégicos, não terem sido taxados, como aviação, por exemplo, já mostra que houve uma pré-negociação com outros atores, como o Congresso norte-americano, empresas ou aliados europeus, para preparar o terreno para esse tarifaço?

Gaspard Estrada: Eu acho que o setor privado brasileiro tem tido sucesso em justamente conseguir destravar algumas partes dessa tarifa. Penso, em particular, no trabalho que foi feito pelo presidente da Embraer nos Estados Unidos, que teve mais reuniões com membros do gabinete do governo do Donald Trump do que o próprio Geraldo Alckmin, que só falou com o secretário de Comércio. Eu acho que essas gestões permitiram que a Embraer escapasse dessa tarifa.

RFI: Um dos fatores que pode ajudar o Brasil a superar os impactos imediatos desse tarifaço é o fato do país não ser mais tão dependente das trocas comerciais com os Estados Unidos como há 20 anos. Do ponto de vista latino-americano, você vê algum espaço para uma resposta regional a essas medidas de Washington?

Gaspard Estrada: Eu acho difícil do ponto de vista regional, no sentido de que muitos dos países, pelo menos na América do Sul, concorrem entre si para exportar alguns produtos para os Estados Unidos. Agora, por outro lado, o que existe é uma capacidade de negociação que é maior por parte de um país como o Brasil, pela diversidade da sua matriz econômica, que justamente permite ter uma dependência menor dos Estados Unidos — o que não é o caso da maioria dos países da região. Alguns dirigentes têm tentado ter uma visão mais assertiva e falar de maneira mais direta com o presidente norte-americano, como o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e o presidente [José Raúl] Mulino, do Panamá. Infelizmente, a relação econômica desses países com os Estados Unidos fez com que, poucas horas após essas declarações, eles tiveram que recuar, porque a realidade econômica se impôs. O que permite ao Brasil ter esse tipo de reação é justamente essa diversificação das relações econômicas externas. Eu acho que isso, para o Brasil, é um grande ativo.

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RFI: O senhor acha que isso vai escalar? Esse tarifaço seria, na verdade, um grande apoio político ao ex-presidente Jair Bolsonaro e a todo o seu clã para as eleições de 2026, na sua opinião?

Gaspard Estrada: Não. Eu acho que ele está tentando ajudar tudo o que pode o ex-presidente Bolsonaro. Agora, eu acho que está havendo um grande erro de avaliação política nesse quadro, no sentido de que a reação da classe política brasileira tem sido de defesa ao Supremo Tribunal Federal. E também está havendo uma repercussão na opinião pública de apoio ao presidente Lula. Nesse sentido, estamos apenas no começo da crise. A gente não pode saber o que vai acontecer daqui a um ano, mas, se a coisa ficar do jeito que está hoje, com um impacto econômico limitado e com um pouco dessa escalada verbal pelos bolsonaristas, para mim, é claro que isso tende a isolar o bolsonarismo do resto da classe política e tende a ajudar na popularidade do presidente Lula.

* Para ouvir a conversa na íntegra com o cientista político Gaspard Estrada, clique no botão PLAY acima

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