RFI Convida

'Entrar atirando não vai debilitar o Comando Vermelho': HRW exige 'perícia independente' no Rio

Publicado em:

A megaoperação policial deflagrada pelo governador Cláudio Castro (PL) na terça-feira (28), nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, deixou ao menos 121 mortos, mais de 113 presos e é considerada a mais letal da história do estado. Em entrevista à RFI, César Muñoz, diretor da Human Rights Watch Brasil, denuncia violações graves de direitos humanos, ausência de perícia independente, uso político da tragédia e falta de estratégia eficaz de segurança pública no Brasil.

Pessoas alinham corpos na Praça São Lucas da favela Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, Brasil, em 29 de outubro de 2025, após a Operação "Contenção".
Pessoas alinham corpos na Praça São Lucas da favela Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, Brasil, em 29 de outubro de 2025, após a Operação "Contenção". AFP - PABLO PORCIUNCULA
Publicidade

César Muñoz, diretor da Human Rights Watch Brasil, inicia sua análise destacando que uma operação policial bem-sucedida deveria resultar em detenções, coleta de informações e desmantelamento de grupos criminosos. No entanto, o que se viu no Rio de Janeiro foi um “banho de sangue”, uma ação desastrosa que, segundo ele, não trará mudanças reais na segurança pública. “Amanhã, talvez piore”, afirma.

A dor das famílias e o medo da população são consequências diretas da operação. Muñoz lamenta que os moradores das áreas afetadas vivam em estado de terror e não confiem na polícia. Para ele, a segurança pública deve ser construída com a população, e não contra ela. O uso excessivo da força letal, inclusive com a morte de agentes, revela a falência da atual estratégia.

“Aqui temos uma polícia que tem usado a força letal e com um resultado horrível, incluindo a morte dos policiais. Eu acho que o Brasil precisa de uma estratégia de segurança pública diferente, baseada na inteligência, em atuar contra as fontes de financiamento de grupos criminosos, a lavagem de dinheiro, o tráfico de armas”, defende Muñoz.

Segundo ele, o Comando Vermelho continuará operando nas mesmas regiões, como Penha e Alemão, após a operação. “Qual é o efeito desta operação?”, questiona.

Mortes sem comprovação e responsabilidade estatal

Questionado sobre a legitimidade das mortes, Muñoz afirma que as decisões que levaram à operação devem ser investigadas. "Não é só responsabilidade do policial que estava lá, mas quem decidiu fazer uma operação que foi um desastre”, afirma.

A ausência de evidências sobre mandados de prisão ou envolvimento comprovado das vítimas com o crime organizado levanta sérios questionamentos. Muñoz exige respostas sobre os critérios usados para justificar a ção. “Em qualquer planejamento de uma operação, um objetivo tem que ser minimizar a perda de vidas. Isso foi feito? Temos que saber essa resposta. Até agora, ninguém respondeu a essa pergunta”, critica.

O diretor da Human Rights Watch Brasil destaca que a operação ocorreu em áreas densamente povoadas, com casas próximas umas das outras. “Você está usando fuzis que têm uma potência muito grande e atravessam paredes. Quando você entra com essa força de fogo, não tem como você não estar atingindo a população que mora lá”, alerta.

A troca de tiros entre policiais e criminosos afeta, inevitavelmente, civis. “Do mesmo lado, os criminosos têm fuzis também, então vai ter essa troca de tiros onde todo mundo vai ficar em risco”, completa.

Leia tambémRio expõe ferida aberta da violência urbana e contradições do Brasil às vésperas da COP30

Investigações comprometidas e perda de evidências

Muñoz defende a investigação individual de cada morte, reconhecendo que algumas podem ter ocorrido em legítima defesa, mas outras não. “Com certeza deve ter mortes, dessas mais de 100, nas quais o uso da força por parte da polícia estava justificado. Mas sabemos que outras não. Essa é a experiência que temos de outros operativos”, afirma.

Por isso, é essencial preservar evidências — o que não foi feito. Imagens mostram corpos levados para uma praça no Complexo da Penha, sem perícia adequada nos locais dos tiroteios. “A polícia não preservou o local do tiroteio. Os familiares foram procurar as pessoas, e não tinha a polícia. Eles levaram os mortos de lá. Isso não poderia ter acontecido”, denuncia.

Há relatos de corpos encontrados em áreas de mata com sinais de execução, como decapitação e facadas. Muñoz alerta que apenas uma análise técnica pode determinar o que ocorreu, mas parte dos indícios já foi perdida. “Só por olhar superficialmente um corpo, é difícil dizer o que aconteceu. Isso tem que ser uma questão técnica que tem que ser feito por peritos legistas”, explica.

As necropsias estão sendo realizadas no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, os peritos são da Polícia Civil, a mesma força envolvida na operação. “Segundo as normas internacionais e as próprias decisões do Supremo Tribunal Federal, os peritos que têm que fazer essa perícia têm que ser independentes da força policial que participou na operação. Isso não está acontecendo”, afirma.

Leia tambémMassacre no Rio reacende tensão entre Lula e extrema direita no Brasil, diz jornal Libération

Uso político da tragédia

A Human Rights Watch e outras organizações pediram para o procurador-geral de Justiça do Rio garantir a presença de peritos independentes. “Nós queremos que seja permitida a presença de um representante das famílias nas necropsias, que é um direito delas e até agora não está sendo respeitado”, salienta Muñoz.

Sobre a atuação conjunta entre esferas estaduais e federais, ele defende uma estratégia nacional. “O crime organizado tem se expandido no Brasil. Acreditar que entrar numa favela e sair atirando vai combater de forma eficiente o Comando Vermelho é uma ilusão. Isso não debilita os grupos criminosos”, garante.

“Para você ser eficiente nessa atuação, você vai precisar de uma coordenação federal. Precisa de uma estratégia coletiva a nível nacional de enfrentamento do crime organizado, que se baseie em dados e em investigação científica, que fortaleça as perícias, inclusive com maior independência”, propõe César Muñoz.

Ele também alerta para o uso político da operação. “É preocupante o uso político desta tragédia e as declarações sem nenhuma base, tentando, por exemplo, acusar todos os mortos de serem criminosos. Vamos ver, né? E mesmo se fossem criminosos, você tem que prender. É isso que determina a lei e o Estado de Direito, não assassinar”, salienta.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios